Miguel Vale de Almeida é antropólogo de formação, Professor universitário, investigador, activista do movimento LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgénero) e integra actualmente o grupo parlamentar do Partido Socialista. Tem várias obras publicadas na área da Antropologia do género e da sexualidade, a última das quais intitulada A Chave do Armário (2009).

 

Observatório das Desigualdades: No livro A Chave do Armário refere que a orientação sexual “constitui uma categoria que é ao mesmo tempo o ápex do processo das identidades colectivas modernas e a primeira grande identificação pós-moderna”. Poderia explicar, de uma forma resumida, em que sentido é que as desigualdades associadas à orientação sexual implicam uma superação dos conceitos de identidade, cidadania e igualdade modernos?

Miguel Vale de Almeida: No sentido em que a identificação pela sexualidade não se baseia nem numa identificação classificatória dos corpos (por sexo, “raça” etc., visíveis) nem numa analogia com o parentesco (nacionalidade, etnia, “raça” outra vez, etc). Ou seja, não se refere a um grupo humano reprodutível enquanto tal, ou a uma sub-categoria do humano. Refere-se a uma identificação que tem de ser dita e que, além disso, demonstra a plasticidade humana (desde o clássico coming out depois de vivência hetero, até aos desenvolvimentos da sensibilidade queer).

OD: Ao contrário dos grupos cujos princípios de discriminação se fundamentam em atributos facilmente apreensíveis (a cor da pele, por exemplo), a orientação homossexual pode ser encoberta, guardada num “armário”. Num contexto cultural predominantemente homofóbico, o ónus da assunção da homossexualidade é uma possibilidade simbolicamente violenta?

MVA: Sem dúvida. É o receio do preço a pagar pela disclosure – preço real ou imaginado/receado. Esse medo é um dos efeitos mais fortes da homofobia.

OD: A orientação sexual é, em vários planos, um factor de desigualdade social no nosso país. Pensa que a idade, a zona de residência, a escolaridade ou o género potenciam as desigualdades experienciadas pelos homossexuais?

MVA: Sim, é razoável pensar isso. No sentido em que há mais probabilidades de sofrer mais a homofobia em lugares sociais menos abertos, menos cosmopolitas, etc. É uma das razões que levam aos fenómenos de migração LGBT e de criação de comunidade.

OD: Quais os efeitos que a institucionalização da igualdade no acesso ao casamento poderá ter no plano do reconhecimento social da homossexualidade, na mudança de consciências e atitudes, no esbatimento desta desigualdade identitária?

MVA: Uma alteração simbólica nas percepções: “se o Estado diz que eles são tão dignos de aceder a isto como eu, então é porque se calhar não são tão indignos como eu pensava.”

OD: O Decreto n.º 9/XI não previu o direito à adopção por parte dos casais homossexuais. Pensa que o reconhecimento legal do direito dos homossexuais à parentalidade por via da adopção deveria coincidir com o direito ao casamento? Ou defende que o acesso dos homossexuais ao direito em causa deve depender da sua progressiva afirmação pública e do seu reconhecimento social?

MVA: Afirmei (e votei) publicamente que a adopção deveria ter sido incluída, mesmo achando que conjugalidade e parentalidade são questões separadas. Mas são igualmente importantes. Mais ainda do que a adopção há que acautelar os direitos das crianças que já existem a terem os seus dois pais ou as suas duas mães reconhecid@s. Não é o reconhecimento social que deve ser esperado, mas sim o reconhecimento pela classe política de que não é aceitável adiar muito a questão. Há que fazer uma forte campanha para mudar a mentalidade política nesta matéria.

OD: Escreveu que um dos problemas das causas LGBT tinha a ver com o facto de poderem ser apenas veiculadas pelo(s) partido(s) mais à esquerda, ?dado o centrismo moralmente aflito e tímido dos partidos do arco do poder?. A legitimação democrática dos parlamentos pela vontade das maiorias funciona de facto muitas vezes como um entrave à afirmação dos direitos das minorias? Surpreendeu-o o facto de o princípio constitucional da igualdade ter sido neste caso acolhido e concretizado no parlamento?

MVA: Não. A partir de um certo momento tornou-se evidente que a campanha que o movimento LGBT e muitas pessoas vinham fazendo começava a colher frutos. Era fundamental conseguir que o arco do poder se sensibilizasse para a questão, e isso aconteceu quando o casamento foi incluído no programa do PS. A partir das eleições tratou-se de conseguir que a promessa avançasse.

OD: O Presidente da República invocou os problemas económicos e financeiros que assolam o país e a necessidade de um clima político estável como alguns dos fundamentos para promulgar a lei que permite o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Este tipo de argumentação tem um cariz evidentemente estratégico do ponto de vista político. Mas não configurará também uma forma de secundarização dos direitos e anseios legítimos de uma minoria?

MVA: Completamente. E uma ideia desrespeitadora dos direitos como centrais na democracia, nunca adiáveis. Para mais quando os direitos cívicos não têm custos nem são orçamentáveis. Outro argumento falacioso (como o contido no uso da expressão “fracturante”) é de que estas questões consomem energias, desviam atenções ou criam crispação – o que é uma estranha manifestação de nostalgia por um certo tipo de consenso podre, de inquestionamento, próprios da pré-modernidade ou da ditadura.

OD: Um dos efeitos mais perversos da cultura homofóbica prende-se com a negação e rejeição, por parte dos homossexuais, da sua orientação sexual. Até que ponto, no seu caso, o olhar antropológico lhe facultou as ferramentas de pensamento necessárias para lidar com a dominante e discriminatória cultura heterossexual, e o incentivou a lutar activamente contra esta desigualdade social?

MVA: Bastante. A relativização da experiência humana ajuda a relativizar também as normativas sexuais, familiares, etc. Ajuda a pensar que outras vidas são possíveis e que essas outras vidas até já existem, mas subalternizadas por estruturas de poder.