Tobias Schumacher é investigador do CIES-IUL. É especialista em Relacionais Internacionais, política internacional, assuntos Euro-Mediterrânicos e em questões políticas do Médio Oriente e Norte de África.

 

Observatório das Desigualdades: Você defende que os regimes do Médio Oriente e Norte de África conciliam medidas políticas de inclusão e exclusão. Pode enumerar alguns exemplos deste tipo de medidas e relacioná-las com as recentes revoltas sociais nessa região? Até que ponto esses acontecimentos estão relacionados com as medidas de exclusão?

Tobias Schumacher: Para termos uma ideia acerca do que eu entendo por medidas de inclusão deixa-me dar-te uma visão mais geral dos desenvolvimentos políticos na região. Uma das principais medidas de inclusão que pudemos observar nos últimos 10 anos (desde o “11 de Setembro”) em todos os países do Médio Oriente e Norte de África tem a ver com o facto de os regimes terem aberto a arena política, introduzindo eleições formais. Em países como a Arábia Saudita ao nível municipal e integrando apenas um grupo bastante bem seleccionado da população. As mulheres, por exemplo, não podem votar. Os partidos políticos foram também introduzidos num largo número de países, um facto que não existia enquanto tal no Médio Oriente. Olhemos para o caso da Tunísia: existia desde 1956 um partido político, o actual RDC de Ben Ali, que dominava todo o processo político. Mas além deste partido político não existia qualquer outro. Nos últimos 10 ou 15 anos na maior parte destes países pudemos assistir à emergência repentina de partidos políticos, de vários partidos que não o do regime. Aparentemente isto faria pensar que a arena política estava a abrir. Contudo, a maior parte destes partidos eram cooptados. Não eram necessariamente partidos do regime como, por exemplo, o RDC, mas eram apenas partidos de fachada, partidos que supostamente deveriam parecer distanciados do regime, mas estavam de facto a apoiá-lo e a contribuir para que este conservasse o poder. O pensamento original deste tipo de regimes era “nós simulamos a abertura da arena política e deste modo fazemos face às expectativas da comunidade internacional no sentido da abertura política (nomeadamente dos Estados Unidos), e portanto incluímos. Mas esta inclusão tem apenas o objectivo de impedir que a população se aproxime do nosso poder. Enquanto controlarmos os processos de inclusão conseguiremos manter-nos no poder.” A criação de partidos aparenta ser uma medida de inclusão, mas é na verdade uma medida que visa a exclusão, pois os partidos políticos não têm de facto qualquer hipótese de chegar ao poder. São fantoches. Estão representados no parlamento, mas nunca conseguiram ser o partido do qual sai o Primeiro-ministro, por exemplo. Mas mais importante do que a questão dos partidos é a das eleições. Os Emirados Árabes Unidos, um dos países mais ricos do Médio Oriente, introduziu pela primeira vez em Dezembro de 2006 eleições para o chamado Conselho Federal, isto é, o parlamento que é suposto eleger o governo do país. Eles publicitaram este facto como sendo um grande sucesso, mas se olharmos atentamente reparamos que apenas cerca de 1% da população pôde votar.

OD: Devido aos apertados critérios na definição dos votantes?

TS: Precisamente. Critérios esses destinados apenas a excluir a população.

OD: As acentuadas desigualdades de rendimento que existem nesses países podem explicar, pelo menos parcialmente, estas revoltas sociais?

TS: Publiquei um artigo há duas semanas no Financial Times Deutschland cujo tema principal é precisamente a distribuição desigual do rendimento nesses países. Diria que a Tunísia é o exemplo clássico daquilo que uma distribuição injusta e, diria mesmo, criminosa do rendimento pode gerar. Embora os tunisinos sejam desde há décadas oprimidos, e embora muitos estejam neste momento a lutar pela democracia, a causa original das revoltas na Tunísia e no Egipto é a distribuição injusta e desigual do rendimento.

OD: Há informação disponível para medir essa desigualdade?

TS: Sim. No que concerne à Tunísia é importante ter em linha de conta que esse país era governado por Ben Ali, sua família e por cerca de 500 pessoas. Devido às políticas do governo este grupo de pessoas puderam beneficiar dos processos de privatização das empresas públicas. Eram-lhes facultados todos os meios financeiros para comprar os monopólios estatais e transformá-los em monopólios privados. O indivíduo comum muito dificilmente beneficiava desses processos de privatização. Se olharmos para a Tunísia vemos que nos últimos 10 anos houve um crescimento anual do PIB per capita de 5%, que foi posto em prática um projecto cuidadosamente desenhado pelo regime de igualdade de género bastante elogiado no ocidente (por ter incorporado as mulheres no mercado trabalho, por lhes terem sido conferidos direitos económicos…), que houve uma aclamação do regime por este ter industrializado o país, por ter criado modernos sectores de actividade turística e manufactureira. O olhar do ocidente debruçou-se sobre os dados macroeconómicos (crescimento do PIB, dívida externa, investimento estrangeiro directo…), que não se importou com o modo como o rendimento estava a ser distribuído e se o rendimento estava de facto a ser distribuído. Se pensarmos no modo como o rendimento era e é distribuído entre aqueles que vivem no norte e no este do país, ao longo da costa marítima, que estão relativamente bem, e aqueles que vivem no interior e no sul empobrecido do país, veremos que são realidades muito distintas. O PIB per capita na Tunísia situa-se um pouco abaixo dos 8 mil dólares, mas esse facto nada nos diz acerca da igualdade de oportunidade entre as pessoas. O desemprego é um dos principais factores que foram altamente negligenciados pela comunidade internacional. Todos elogiámos este regime devido aos sucessos macroeconómicos e de estabilização. Mas quando consideramos que cerca de metade da população tem menos de 30 anos e que no seio deste grupo etário 30% estão desempregados, podemos compreender que a questão da distribuição do rendimento está no centro do problema.
Uma outra questão que pode também ajudar a explicar estes eventos recentes tem a ver com os preços dos alimentos. Desde 2008 que assistimos a um aumento brutal dos preços dos alimentos, tais como o pão, o azeite, o leite, ou preços dos combustíveis… necessidades básicas. Nos países africanos ou do Médio Oriente, que não estão integrados no sistema económico mundial e nos quais existem enormes clivagens ao nível do rendimento e das oportunidade, é óbvio que o aumento do preço do pão, por exemplo, é um facto brutal que afecta o quotidiano das pessoas e o modo como elas perspectivam se existe de facto um futuro para si e para as suas famílias.

Direitos das mulheres, educação e expectativas de vida

OD: E relativamente às reivindicações femininas?

TS: Em primeiro lugar, é importante dizer que as mulheres não têm ainda os mesmos direitos do que homens em qualquer dos países do Norte de África e do Médio Oriente. Esta é a zona do globo que apresenta a mais baixa taxa de participação feminina no mercado de trabalho. No Egipto, por exemplo, apenas 23% das mulheres participam no mercado de trabalho. Na Tunísia o valor desse indicador é de 27%, e não nos esqueçamos que este país tem sido considerado como o mais progressista em todo o Médio Oriente no que diz respeito à igualdade de género. Este facto dá-nos uma ideia do quotidiano das mulheres no que diz respeito à sua independência, às suas perspectivas de um modo geral. É interessante referir que na Tunísia as mulheres constituem a maioria dos graduados universitários. Há mais mulheres a ir para a universidade e a concluir os respectivos graus de ensino do que homens. Mas relativamente à entrada no mercado de trabalho elas são constantemente discriminadas. Diria que em todo o Médio Oriente e Norte de África, talvez com algumas excepções no Líbano, as mulheres são sistematicamente discriminadas no mercado de trabalho e dificilmente o integram. O Egipto, por exemplo, tinha até há pouco tempo uma lei – que eu espero que seja alterada se o Mubarak cair (a entrevista foi realizada antes da sua saída do poder, nota do entrevistador) – que proibia as mulheres de trabalhar durante a noite.

OD: O aumento do nível educacional destas populações, nomeadamente das mulheres, pode também ter contribuído para as recentes revoltas sociais?

TS: Depende do país. Eu diria que na Tunísia a mistura do maior esclarecimento das pessoas, alguma educação e o acesso à educação superior, em conjugação com a deterioração da situação microeconómica de largos sectores da sociedade, contribuíram fortemente para o que se tem passado nos últimos dois meses.

OD: As expectativas de vida também aumentam…

TS: Sim, a Tunísia é uma sociedade muito próxima da Europa, tem fortes laços com a França, e a sua exposição a este tipo de sociedades contribuiu para as pessoas terem uma noção mais apurada das suas condições de vida e de como a vida é possível noutros lugares. No Médio Oriente as mulheres são sistematicamente oprimidas e supostamente não devem ter qualquer opinião política. Em países como a Tunísia e, de certa forma, como a Argélia é possível observar as mulheres a participar abertamente no debate público, elas são vistas como agentes políticos credíveis e necessários. No Egipto, porém, o cenário é bastante diferente porque o nível educativo médio é bem mais baixo: apenas 36% da população concluiu o ensino básico. Se tivermos em linha de conta que as mulheres são a maior parte da população, fica-se com uma ideia bastante clara acerca do que isto significa ao nível do perfil qualificacional das mulheres. Por exemplo, no Egipto as mulheres continuam bastante limitadas às tarefas domésticas, à educação dos filhos, ao apoio ao marido e à família. É interessante reparar que este desequilíbrio é de algum modo reflectido nas imagens transmitidas pela Al Jazeera a partir do Cairo ou de Alexandria: são essencialmente os homens que protestam na rua, muito dificilmente surge uma mulher. Durante a revolta social na Tunísia, no entanto, as mulheres estão por todo o lado, facto que na minha opinião reflecte o diferente estatuto social e constitucional das mulheres nos diferentes países da região. Não nos esqueçamos que no Egipto as mulheres usam geralmente o passaporte do marido para viajar.

O Corão e o processo de democratização

OD: O Corão é uma fonte de direito nos países do Médio Oriente e Norte de África. Até que ponto isto pode ser considerado um potencial obstáculo ao processo de democratização destes países?

TS: A forma como a pergunta está a ser feita reflecte uma opinião preconcebida acerca da forma como nós pensamos este assunto. Nós acreditamos que a democracia tem de ser secular, facto que pode ser questionado. Acredito que a democracia pode assumir muitas formas e cambiantes, uma das quais é a de que a democracia pode ser inspirada e assentar a sua estrutura em paradigmas religiosos. Isto não significa que eu seja a favor deste tipo de modelos, mas acredito que sejam realizáveis. É preciso sublinhar que na maioria dos países do Médio Oriente o Corão está bastante enraizado na Constituição dessas sociedades e na forma como a lei é interpretada, em particular ao nível da lei civil. O Irão é disso um exemplo extremo. Depois há o caso da Tunísia, que é um exemplo oposto. No sentido em que não há uma única referência ao Corão na sua Constituição, excepto quando nela se estipula que “A Tunísia é um Estado Islâmico.” Diria que a Tunísia é o Estado no qual o islão tem tido menos influência legal. Por seu lado, Marrocos e a Jordânia são dois exemplos nos quais o islão é uma fonte inspiradora e fundacional do regime, porque o rei de Marrocos e o rei da Jordânia dizem ser descendentes directos do profeta Maomé. E há os casos da Arábia Saudita e do Irão, que são exemplos extremos da influência legal da sharia. A tua pergunta é: “é ou não o Corão um obstáculo ao processo de democratização?” Tendo em conta o status quo eu diria que é um obstáculo considerável no que diz respeito à liberalização política, não necessariamente à “democratização”. Enquanto a sharia for aplicada pelos regimes, estes têm à sua disposição um poderoso instrumento que ninguém pode, na realidade, contestar. Para a grande maioria dos árabes, a fé é uma parte integrante da sua vida, da sua identidade. Neste sentido, os regimes exploram este facto em seu benefício. Na Tunísia, por exemplo, o regime controlava os imãs, controlava aqueles que professavam nas mesquitas com o intuito de garantir que aquilo que eles diziam estava em consonância com as políticas do regime e não de acordo com o que os islamistas gostariam de ouvir, simplesmente porque o regime teve durante décadas medo da acção dos islamistas. No fundo, esta é a linha invisível sobre a qual os regimes do Médio Oriente e do Norte de África têm caminhado: por um lado, muitos aplicam a sharia; por outro, estão a combater os islamistas.

A agenda política anti-imigração e o “outro”

OD: O que pensa acerca da agenda anti-imigração que tem emergido na Europa nos últimos anos, a qual faz parte do programa político de alguns partidos que suportam governos? Qual a importância da crise económica e financeira e do “11 de Setembro” para a compreensão deste fenómeno?

TS: Ao longo da história a atitude perante, digamos, o “outro”, esteve sempre muito dependente do bem-estar económico individual. Quanto melhor fosse a nossa situação, maior era a nossa tolerância e vice-versa. Se relacionarmos este paradigma com as noções de segurança, insegurança ou com a noção de ameaça que o “outro” pode representar, fica relativamente óbvio que a dimensão económica apenas uma das variáveis. A política e a retórica política é o outro elemento. E com certeza que podemos perceber que a xenofobia tem aumentado massivamente desde o “11 de Setembro”, não só na Europa, mas literalmente no mundo inteiro. Quando viajamos para os Estados Unidos, desde que pisamos o solo americano podemos sentir esse tipo de sensações pela forma como os oficiais de segurança nos tratam. Não és considerado um português ou alemão, mas simplesmente uma potencial ameaça. Mas isto está relacionado com outros dois factores. O primeiro é a integração europeia. Penso que a xenofobia é o lado negro da integração europeia, no sentido em que nos acostumámos a ter europeus no nosso país, a comunicar em inglês, pelo simples facto de o estrangeiro ser europeu. Paralelamente a integração europeia, por ter erigido uma fortificação nas fronteiras da Europa, e tendo como pano de fundo o “11 de Setembro” e a histeria em torno da denominada guerra ao terrorismo internacional, gerou também um aumento injustificado do medo face ao “outro” que tem, digamos, pertenças étnicas e culturais diferentes.

OD: Os problemas relacionados com o processo de integração da Turquia na União Europeia podem também ser lidos a partir dessa perspectiva?

TS: Totalmente. E claro devido à dimensão da Turquia, mas isso é uma questão política e de poder político. O segundo ponto é a globalização. A crescente permeabilidade das fronteiras e a maior exposição de todos nós ao “outro” é algo que poderia teoricamente conduzir a uma maior integração, mas tal não tem acontecido. Pelo contrário, o que eu observo é um processo pelo qual as pessoas estão cada vez mais resistentes face ao “outro”, procurando encontrar orientação para a sua vida quotidiana no interior das suas pequenas comunidades, simplesmente porque a globalização tornou-se num processo bastante difícil de decifrar para o cidadão médio. Isto pode ser observado no Médio Oriente. Em alguns casos, a população local rejeita, digamos, o refugiado iraquiano pelo simples facto de ele não pertencer a esse contexto e de não ser um deles. Ele é sem dúvida um árabe e nesse sentido é até certo ponto um irmão, mas mesmo assim ele é sistematicamente excluído das redes sociais locais e das oportunidades de integração social na sociedade que o recebe.

OD: Existem nessa região grupos étnicos ou nacionais dominantes e dominados, como por exemplo os mexicanos nos Estados Unidos ou os turcos na Alemanha?

TS: Não tenderia a definir essa relação a partir dos grupos nacionais, ou seja, a partir do critério “ qual é o teu país?”, mas sim tendo em conta a pertença religiosa. “És xiita ou sunita?” Esse é o conflito emergente que estamos e vamos cada vez mais testemunhar nos próximos anos no médio Oriente.

O princípio da igualdade

OD: Pensa que o ideal constitucional republicano da igualdade é válido mesmo que se afigure etnocêntrico?

TS: Depende do contexto em que a questão for levantada…

OD: Em França, por exemplo, foi levantada a propósito do uso do véu islâmico nas escolas públicas…

TS: Sim, e na Alemanha houve um debate semelhante em torno na possibilidade de existirem crucifixos nas salas de aula. A forma como esta questão foi levantada e o modo como este debate é feito habitualmente assumem um cariz um pouco de “preto ou branco”. Ou se pode usar o véu e exprimir e viver a religiosidade livremente sem a interferência das autoridades, ou segue-se a ideia republicana e ideia de secularismo. O debate foi simplificado e instrumentalizado politicamente.

OD: Não lhe parece que a este nível não se está apenas a falar de secularismo ou de religião (liberdade religiosa), mas sim do núcleo central dos regimes constitucionais europeus, nomeadamente do princípio da igualdade sobre o qual assentam esses mesmos regimes políticos? Como podem este tipo de questões ser resolvidas?

TS: Penso que seria ingénuo acreditarmos que se pode criar uma situação na qual os princípios e liberdades em que acreditamos são iguais entre si. Não o são. No final temos sempre de sacrificar um princípio em função do outro. O que temos tentado fazer nos últimos anos é equilibrar ao máximo os nossos princípios. Os debates sobre o véu e o crucifixo são bons exemplos de um facto decisivo, nomeadamente de que não é possível promover esse equilíbrio entre os princípios que dizemos defender. Vão existir sempre situações em que alguém acaba por ser discriminado e esse alguém irá porventura erguer o seu dedo e iniciar um debate, trazendo essa questão novamente à nossa consciência. Esta é uma questão jurídica e constitucional, mas é também certamente uma questão filosófica.

OD: Isso conduz-nos novamente à questão das medidas políticas de inclusão e exclusão…

TS: Exactamente, mas o factor motivacional é bastante diferente quando comparamos estas medidas ou decisão com aquelas de que falámos a propósito do Médio Oriente, as quais como vimos destinam-se simplesmente a excluir. O objectivo dos decisores europeus não é necessariamente o de excluir. Não se trata necessariamente de preservar os seus poderes, enquanto no Médio Oriente, na minha opinião, as medidas de exclusão são adoptadas não com o intuito de se respeitar e enaltecer a Constituição – a Constituição não tem nada a ver com o assunto. Para simplificar: nós fazemo-lo porque acreditamos num ordenamento político liberal, secular e democrático; os legisladores autoritários do Médio Oriente e do Norte de África e de todo o lado fazem-no porque acreditam que as estruturas autoritárias e opressivas são as únicas formas para se conservarem no poder e, em segundo lugar, porque todos partilham uma atitude muito paternalista no que diz respeito à sua posição na sociedade.