Recensão por: André Marinha

 

Friedman, Sam e Daniel Laurison (2019), The Class Ceiling: Why it Pays to be Privileged, Bristol, Policy Press.

 

O que significa o mérito? Como se legitimam as desigualdades nas sociedades contemporâneas? Uma análise crítica da mobilidade social no Reino Unido.

A promessa da meritocracia não se realizou. O obituário dedicado às classes sociais mostrou-se prematuro. Perante a persistência e aprofundamento de desigualdades sociais várias, a ideia de mobilidade social adquiriu o estatuto de instrumento retórico destinado à concretização de um ideal de justiça social. As metáforas que se constituem em torno da mobilidade social implicam movimento, frequentemente percebido num sentido ascendente, no sentido da equidade e, no mínimo, da justiça processual – o elevador, a escada. Este movimento, embora subtil, não opera no anonimato: a referência à mobilidade social vem informando e enquadrando a elaboração de políticas públicas e o funcionamento mais vasto das organizações e instituições que compõem a vida social e política das sociedades contemporâneas, sob o signo do ideal meritocrático. De facto, a posição dos indivíduos no interior dos sistemas de estratificação social permanece relevante e atual, impactando sobre as possibilidades efetivas de recrutamento e progressão em profissões de topo (elite occupations).

Em The Class Ceiling: Why it Pays to be Privileged, Sam Friedman e Daniel Laurison desenvolvem uma importante e inovadora abordagem teórico-metodológica à problemática da mobilidade social como forma de melhor compreender de que modo a origem de classe influi nas trajetórias profissionais dos indivíduos. O estudo da composição e dos perfis daqueles (e daquelas) que ocupam profissões e posições de topo confirma a fórmula da reprodução social: os indivíduos que auferem os maiores rendimentos e que ocupam as posições cimeiras no interior das organizações provêm maioritariamente de uma posição de classe privilegiada e tendem a legitimar o seu sucesso a partir de uma linguagem do mérito, enquanto “fortuna legítima” (pp. 4). A desigual distribuição de capitais de partida tende a reproduzir-se, criando metástases que obliquam as trajetórias e obstaculizam a mobilidade ascendente daqueles e daquelas que partem de posições de classe caraterizadas pela prevalência de menores rendimentos e riqueza, menor escolaridade e de contactos sociais rarefeitos e/ou inexistentes com indivíduos em posições privilegiadas. Para os autores, porém, urge a identificação e reconstituição do conjunto de mecanismos que beneficiam os indivíduos provenientes de classes sociais privilegiadas, relativamente àqueles oriundos dos níveis mais baixos dos sistemas de estratificação social, no mundo do trabalho. Explicar-se-á o seu sucesso simplesmente através do “mérito” de uns face ao “demérito” sistemático de outros?

A obra de Friedman e Laurison inova quando recupera e articula duas das mais prolíficas tradições de investigação sociológica do século XX – o estudo das classes sociais e da constituição social das elites– de modo a compreender não somente “quem acede” – mas também “quem progride” – nas profissões de topo – nas áreas da arquitetura, da contabilidade, do teatro e da televisão – no Reino Unido. O título do livro antecipa, desde logo, a sua conclusão: à imagem de um elevador social danificado[1], associa-se aquela de um teto – que os autores recuperam das teorias feministas – que tende a impedir a progressão dos indivíduos oriundos de contextos menos privilegiados, constituindo um “teto de classe” (class ceiling). Um “teto de classe” que não distingue somente no recrutamento e progressão no interior das supramencionadas profissões de topo, mas que, dentro destas, promove também diferenças ao nível da remuneração – “os indivíduos provenientes da classe trabalhadora auferem, em média, menos 16% nas profissões de topo do que os colegas provenientes de classes privilegiadas”[2](pp. 21), equivalendo “em média, a menos £6400 por ano”[3](pp. 47). Interrogamo-nos juntamente com Friedman e Laurison: Porquê? Que fatores tendem a beneficiar os privilegiados?

Os dois primeiros capítulos da obra apresentam o mapeamento e a análise estatística dos dados relativos à origem de classe dos inquiridos no âmbito do Labour Force Survey. A análise extensiva da composição social das profissões de topo atesta a ausência de diversidade classista (pp. 33) e a tendência para a sua reprodução, por via do sistema educativo (pp. 36 – 37) e de uma “micro-class reproduction” no plano familiar (pp. 35), assim como a dimensão interseccional e cumulativa das modalidades de recrutamento e progressão das elites, uma vez que também as mulheres, as minorias étnicas e as pessoas portadoras de deficiência “estão substancialmente sub-representadas” (pp. 44). As diferenças salariais com base na pertença de classe atestam, de igual modo, a forma como estas se intersetam e multiplicam quando associadas a diferenças salariais baseadas no género ou etnia – “uma mulher britânica negra da classe trabalhadora, por exemplo, aufere rendimentos em profissões de topo que são, em média, inferiores em £20000 por ano face àqueles auferidos por homens brancos de origem privilegiada”[4](pp. 52).

O terceiro capítulo procura compreender se as diferenças de rendimento com base na pertença classista são explicadas por diferenças ao nível do “mérito” – considerando, aqui, o sucesso educativo, a experiência laboral, o nível de formação, ou a performance laboral. A promessa da meritocracia, assente na valorização do sistema educativo como mecanismo de restituição da igualdade de oportunidades, falhou. De acordo com os autores, “os indivíduos provenientes da classe trabalhadora possuem menor probabilidade de possuir um grau académico, menor probabilidade de haver frequentado universidades prestigiadas, e tendem a auferir menos inclusive quando foram para as melhores universidades e obtiveram os melhores resultados”[5](pp. 64). Assim, 47% das diferenças de rendimento com base na pertença classista são explicadas pela articulação de três fatores (pp. 69): (i) mais educação e posse de credenciais educativas de maior prestígio; (ii) possibilidade de viver e trabalhar em Londres, onde a remuneração tende a ser superior; (iii) recrutamento por parte de firmas de maior dimensão e prestígio, tendencialmente mais seletivas e onde a remuneração tende a ser superior. Como se explicam os restantes 53% da diferença?

A compreensão daquilo que escapa à investigação de caráter extensivo, a partir da análise de inquéritos de larga-escala, é complementada pela análise substantiva das dinâmicas, processos, valores e significados que constituem o quotidiano dos indivíduos e das organizações a partir da incursão no terreno. No quarto capítulo, são apresentadas as dinâmicas de funcionamento de três organizações – uma firma de arquitetura, uma de contabilidade e uma produtora de conteúdos televisivos, constituindo três dos quatro estudos de caso que constituem esta obra. Friedman e Laurison sugerem que, no interior destes espaços de elite, persistem segregações horizontais e verticais dos indivíduos socialmente móveis, frequentemente vetados ao desempenho de funções em departamentos menos prestigiados e/ou a posições inferiores (pp. 69). Os indivíduos socialmente móveis experimentam, não raramente, situações de inércia nas suas vidas profissionais, enquanto outros, movidos por uma brisa suave que se normaliza e autojustifica, progridem. De que matéria se constitui este “teto de classe”?

Os cinco capítulos seguintes constituem uma análise – a partir de 175 entrevistas aplicadas a indivíduos com diferentes origens sociais, nos quatro estudos de caso[6]– dos mecanismos que consubstanciam e consolidam um “teto de classe”. Os autores identificam quatro fatores-chave que contribuem para a sua emergência: o “Bank of Mum and Dad” (Capítulo 5); o “patrocínio” (sponsorship, Capítulo 6); códigos de conduta dominantes e valores culturais distintivos (Capítulos 7 e 8); e a auto-eliminação dos indivíduos socialmente móveis (Capítulo 9).

Friedman e Laurison convocam, para a compreensão sociológica do fenómeno, a articulação das estruturas materiais e simbólicas, em virtude da natureza multidimensional das posições de classe e, por extensão, da mobilidade social. A referência ao “Bank of Mum and Dad” remete para desigualdades ao nível da estrutura material, permitindo que os indivíduos de classes privilegiadas, “isolados da precariedade” (pp. 91) e da “ansiedade” que adjaz à urgência de uma fonte de remuneração (pp. 89), experimentem um conjunto de oportunidades que permite, em última instância, o desenvolvimento de redes de sociabilidade e a adesão ao risco em fases iniciais da entrada no mercado de trabalho, com “impacto a longo prazo” (pp. 91) no desenho de “carreiras promissoras” (pp. 90).

Em articulação com as desigualdades materiais, atuam outros fatores, que remetem para uma estrutura simbólica e interpretativa, e que se explicam, no essencial, a partir de uma “homofilia de cultura de classe” (pp. 111) – ou afinidade cultural através da partilha de atividades de lazer, gosto e humor – que tende a sedimentar, normalizar e reproduzir desigualdades ao nível do acesso e do progresso nas posições e profissões de topo no Reino Unido, sobretudo nas áreas da contabilidade, do teatro e da televisão, onde a dimensão incorporada do capital cultural (pp. 154) aliada à noção Bourdieusiana de “disposição estética” (pp. 197) tende a associar uma linguagem do “mérito” a uma determinada “performatividade de classe” (pp. 185). No interior da firma de arquitetura, releva essencialmente a circulação e posse de um “capital técnico” – “enquanto forma de conhecimento e domínio prático, de know-how”(pp. 203) – constituindo, deste modo, o único estudo de caso onde não se manifesta um “teto de classe” (pp. 207), pese embora persista um “glass ceiling” que impede a progressão vertical de mulheres no interior das organizações (pp. 208).

O “campo de possibilidades objetivas”[7]dos indivíduos provenientes da classe trabalhadora é distinto daquele experimentado pelas classes privilegiadas, conduzindo os primeiros a um processo de “auto-eliminação” enquanto “reação a, ou antecipação de” (pp. 173) uma obliquidade que opera em benefício das classes privilegiadas.

A identificação das dinâmicas de “mobilidade patrocinada” a partir de uma homofilia de classe, de “adequação” relativamente a uma imagem de “competência” e “confiança” que informa os processos de recrutamento e progressão e que não raramente solicita uma determinada performance de classe, inscreve The Class Ceiling: Why it Pays to be Privilegednuma discussão acerca dos processos e dinâmicas de poder e reprodução, mas também de mudança e transformação social, conforme atesta o epílogo intitulado “10 ways to break the class ceiling” (pp. 229).

Sam Friedman e Daniel Laurison renovam e atualizam, com The Class Ceiling, o estudo das classes sociais e da mobilidade social, atestando a sua vitalidade e pertinência num contexto de desigualdades crescentes entre aqueles no topo e na base dos sistemas de estratificação social. Tendo como referência investigação recente acerca da ideia de meritocracia[8], que prescreve um ideal de justiça processual a partir da simples promoção de igualdade de oportunidades de acesso, os autores desenvolvem uma abordagem teórico-metodológica que concilia contributos das teorias feministas e da gramática sociológica de Pierre Bourdieu, investigação de base quantitativa e qualitativa, de modo a captar a natureza multidimensional da mobilidade social a partir da compreensão do impacto da posição de classe nas trajetórias de mobilidade dos indivíduos. Seguindo os autores, The Class Ceiling pretende conhecer não somente quemé recrutado para as profissões e posições de topo, mas quem é bem-sucedido neste trajeto. A probabilidade de ser bem-sucedido conhece, então, diferenças de acordo com a posição de classe dos indivíduos e que se explicam a partir da reprodutibilidade dos capitais de partida e de um teto de classe que encontra numa determinada performance de classe a plataforma privilegiada do “mérito”.

The Class Ceiling é uma obra atual, escrita para todos os públicos. Possui, por isso, a importância de um manifesto sociopolítico – que questiona e fornece respostas para, no fim, em harmonia com a história e os tempos que o enquadram, interpelar o leitor: é a meritocracia verdadeiramente o ideal de justiça adequado a uma sociedade onde as desigualdades se aprofundam?

 

Referências Bibliográficas

 

Bourdieu, Pierre (2002 [1972]), Esboço de Uma Teoria da Prática, Oeiras, Celta Editora.

 

[1]OCDE (2018), A Broken Social Elevator? How to Promote Social Mobility, Paris, OECD Publishing.

[2]Tradução própria.

[3]Tradução própria.

[4]Tradução própria.

[5]Tradução própria.

[6]Um conjunto de atores foi também entrevistado como forma de analisar a composição social e as dinâmicas que constituem as trajetórias profissionais no Teatro, enquanto quarto estudo de caso.

[7]Bourdieu, 2002 [1972]: 164

[8]A título de exemplo, salientam-se os trabalhos de Jonathan Mijs: Mijs, Jonathan (2019), “The Paradox of Inequality: income inequality and belief in meritocracy go hand in hand”, Socio-Economic Review, mwy051, https://doi.org/10.1093/ser/mwy051, eMijs, Jonathan (2016), “The Unfulfillable Promise of Meritocracy: Three Lessons and Their Implications for Justice in Education”, Social Justice Research, 29 (1), pp. 14 – 34.