Recensão por: Francisca Reina

 

Harper, C.; Marcus, R.; George, R.; D’Angelo, S.; e Samman, E. (2020), Gender, power and progress: How norms change, London, ALIGN/ODI.

 

As desigualdades de género globais apoiam-se em relações de poder expressas através de normas e práticas partilhadas sobre o género, pelo que a sua erradicação está também dependente da difícil mudança ao nível dos valores e atitudes de género enraizadas na sociedade.

Neste relatório publicado pela plataforma ALIGN/ODI, Harper, Marcus, George, D’Angelo e Sammam analisam as desigualdades de género globais dos últimos 25 anos sob uma perspetiva normativa. O pressuposto de que partem é o de que as relações de género, enquanto relações de poder desiguais, assentam em normas e práticas que implicam expectativas e papéis sociais diferentes em função do género. A normalização dessa diferença por via da socialização é o mecanismo pelo qual as desigualdades de género se reproduzem, enquanto a sua intersecção com outras formas de opressão (de classe, etnicidade, orientação sexual) tende a reforçá-las. Dessa forma, o caminho para a igualdade de género passa também (mas não só) por uma transformação dos modelos normativos dominantes, associados a uma estrutura de poder patriarcal.

Esta análise é informada pela produção teórica e conceptual sobre normas sociais de género em vários campos disciplinares, como a psicologia social, a sociologia, a antropologia e os estudos de género. Harper et al. (2020) apoiam-se nestes contributos teóricos para estudar a evolução das normas de género à escala global, tal como refletidas nas atitudes e valores e em indicadores chave da desigualdade de género, ilustrados com dados qualitativos sobre mulheres no Nepal e Uganda. O estudo analisa sobretudo casos do Sul Global, permitindo captar a especificidade das configurações socioculturais das normas e desigualdades de género em contextos diversos. Além disso, produz recomendações centradas na inclusão dos grupos afetados pelas múltiplas faces da desigualdade, reconhecendo que as relações de género se apoiam em estruturas de poder mais abrangentes.

As autoras propõem uma trajetória de mudança normativa que implica superar várias fontes de resistência, incluindo as sanções e recompensas associadas à manutenção da ordem, as “barreiras sistémicas”, e os “freios patriarcais” (normas invisíveis e institucionalizadas que sustentam a autoridade masculina), que se combinam com outras formas de dominação para acentuar múltiplas desigualdades. Estes conceitos são mobilizados para compreender progressos e retrocessos em quatro áreas fundamentais, que se influenciam mutuamente: a educação, os direitos sexuais e reprodutivos, o trabalho remunerado e não remunerado, e a participação política. Assim, as normas de género que excluem as raparigas e mulheres do acesso à educação (sobretudo do nível secundário e superior) são as mesmas que lhes negam direitos sexuais e reprodutivos – que vão desde os métodos de planeamento familiar ao domínio sobre a sua sexualidade e os seus corpos face à violência de género. São também as mesmas que distribuem os papéis de género nos termos da distinção público/privado, excluindo as mulheres da participação política e produzindo uma divisão do trabalho baseada no género. Em períodos de crise, quando as mudanças não se consolidam, estas normas discriminatórias tendem a reaparecer ou a exacerbar-se.

Mais concretamente, Harper et al. concluem que a redução substancial das disparidades de género na educação tem sido impulsionada pelo enfraquecimento das normas que priorizam a educação masculina, mas a atual crise pandémica criou dificuldades para as raparigas de famílias e países com menores rendimentos, mais expostas ao abandono escolar. A mudança neste setor deve passar pela expansão do acesso a educação de qualidade e pela institucionalização da igualdade de género nos sistemas educativos.

No caso da saúde sexual e reprodutiva, a mudança de atitudes em torno da sexualidade feminina demonstra um alcance limitado quando olhamos para os números da violência nas relações de intimidade à escala mundial (ao que tudo indica, agravados pela pandemia): cerca de uma em cada três mulheres e raparigas tinha sofrido abuso físico ou sexual em 2015. A melhoria do acesso a serviços de saúde de qualidade, a adoção de reformas legais e políticas mais igualitárias (dirigidas também à comunidade LGBTQI+) e a mobilização social podem abrir o caminho da mudança nesta dimensão.

Por seu turno, a participação feminina no mercado de trabalho e o tempo gasto com trabalho não remunerado (muito mais alto para as mulheres) mantiveram-se estáveis, enquanto as atitudes revelam uma evolução positiva, fruto do aumento dos níveis educacionais, das oportunidades de trabalho e de reformas legais e políticas mais igualitárias. Contudo, persistem normas desiguais em torno das responsabilidades com cuidados e tarefas domésticas e relativas ao assédio sexual no local de trabalho. A expansão de serviços de cuidados infantis acessíveis e com qualidade, bem como oportunidades de trabalho mais justas e seguras, podem catalisar a mudança.

Finalmente, a notável expansão da participação política das mulheres tem significados variados. Se a representação parlamentar feminina (restrita a uma elite) é insuficiente para produzir mudanças nas atitudes e valores, os avanços na educação e no trabalho, a força dos movimentos feministas e os sistemas de quotas têm sido cruciais. Ainda assim, o seu alcance é limitado pela distribuição desigual do trabalho não remunerado e pela discriminação e violência contra as mulheres na política. Por isso, o apoio aos movimentos feministas e a medidas de educação cívica e de prevenção da violência é necessário para provocar a mudança.

Em conclusão, o estudo de Harper et al. pode servir de ponto de partida para uma análise empírica mais profunda sobre os valores e as atitudes de género nas sociedades e a sua relação com as múltiplas frentes do combate às desigualdades de género. Face ao interesse crescente pelas normas de género na academia e no setor do desenvolvimento, têm surgido novas propostas de conceptualização e medição, destacando-se o Índice de Normas Sociais de Género (UNDP, 2020). Ainda assim, a cobertura limitada dos indicadores existentes coloca obstáculos a uma análise comparada das discriminações de género à escala global.

 

Referências bibliográficas

Harper, C.; Marcus, R.; George, R.; D’Angelo, S.; e Samman, E. (2020), Gender, power and progress: How norms change, London, ALIGN/ODI.

UNDP (2020), Tackling Social Norms: A game changer for gender inequalities, New York, Human Development Reports.