Recensão por: Inês Tavares
O World Inequality Report 2022, publicado pelo World Inequality Lab e coordenado por Lucas Chancel, Thomas Piketty, Emmanuel Saez e Gabriel Zucman, é um relatório acerca das desigualdades globais, que já engloba dados e análises que versam sobre a crise pandémica.
Esta obra oferece um extenso conjunto de dados acerca das desigualdades mundiais, bem como uma análise aprofundada acerca dos mesmos. O relatório distribui-se em 10 capítulos: (1) desigualdades económicas globais; (2) desigualdades globais de 1820 ao presente; (3) países ricos, governos pobres; (4) desigualdades de riqueza globais; (5) os rendimentos do trabalho feminino numa perspetiva global; (6) desigualdades de carbono globais; (7) o caminho para a redistribuição de riqueza; (8) [uma discussão acerca de] tributar as multinacionais ou tributar os ricos; (9) perspetivas globais versus unilaterais de justiça fiscal; (10) e um último capítulo referente à emancipação, redistribuição e sustentabilidade. Estes últimos três capítulos elaboram uma discussão acerca de diferentes opções para combater as desigualdades, através do conhecimento de diferentes experiências em vários pontos do globo, bem como em diferentes momentos históricos. De notar também que tanto as desigualdades de género no rendimento de trabalho como as desigualdades das emissões de carbono são novos temas apresentados neste relatório, que não tinham sido abordados no anterior, publicado em 2018 (Facundo et al., 2018).
Este é um relatório bastante rico ao nível de informação estatística, disponibilizando um conjunto de informação empírica inédita que permite uma análise mais precisa e fundamentada das desigualdades a nível global. É de ressalvar o maior aprofundamento acerca das questões da distribuição da riqueza que constam neste relatório, comparativamente ao anterior, refletindo o progresso do trabalho do World Inequality Lab.
O relatório conclui, antes de mais, que os mais ricos aumentaram as suas fortunas e o fosso entre os mais ricos e os mais pobres também aumentou. De facto, em 2021, os 10% mais ricos detinham 52% do rendimento mundial, em comparação com 8,5% detido pelos 50% mais pobres. Quando a análise se centra na riqueza, estes valores aumentam significativamente, detendo os 10% mais ricos cerca de 76% da riqueza e os 50% mais pobres cerca de 2% da riqueza mundial. Esse é um dado bastante pertinente, uma vez que permite melhor compreender o alcance e a magnitude do crescimento das desigualdades. É relevante assinalar que, como seria de esperar, a pandemia originou um aumento das desigualdades de riqueza entre os escalões situados no topo e na base. De facto, entre 2019 e 2021, a riqueza dos 0,001% mais ricos aumentou 14%, comparativamente ao crescimento da riqueza total de 1%.
Focando a análise nos rendimentos, a região do Médio Oriente/Norte de África (MENA) é mais desigual, enquanto que a Europa é a região menos desigual. Comparativamente, os 10% mais ricos na Europa auferem 36% dos rendimentos, enquanto que no MENA auferem 58%. É ainda de realçar que a Europa é a única região em que os 40% do meio[1] representam mais rendimentos que os 10% mais ricos.
Os autores apresentam o Theil Index, um índice particularmente relevante, que compara, em percentagem, as desigualdades dentro dos países versus as desigualdades entre os países, com o qual constatam que as desigualdades entre países têm reduzido desde 1980 (nesse ano representavam 57% da desigualdade global, sendo que em 2020 esse valor era de 32%) e que, consequentemente e por contraponto, as desigualdades dentro dos países têm aumentado. De facto, a desigualdade entre países em 2020 materializava-se em cerca de um terço das desigualdades globais, sendo os restantes dois terços representados pelas desigualdades dentro dos países. Ao fazer a análise do Theil Index desde 1820, é de notar que as desigualdades entre dos países aumentaram consistentemente até 1980 (+46 p.p.), por contraponto com as desigualdades dentro dos países (que diminuíram os mesmos pontos percentuais), sendo que a partir dessa data a tendência inverteu-se, tendo as desigualdades dentro dos países diminuído 25 p.p..
Numa comparação entre os setores públicos e privados, o estudo mostra como, na maioria dos países ricos, o setor privado aumentou substancialmente a sua riqueza nos últimos 50 anos, enquanto o setor público viu a sua riqueza ser diminuída. Exemplo disso é o Reino Unido, país no qual a riqueza do setor público diminuiu de 60% do rendimento nacional em 1970 para -106% em 2020 (-166 p.p.), enquanto que a percentagem do rendimento nacional do setor privado aumentou mais de 300 p.p.. Porém, este aumento de riqueza no setor privado também foi desigual, tanto dentro dos países, como a nível global: da riqueza adicional total acumulada desde 1995, os 1% mais ricos ficaram com 38%, enquanto que os 50% mais pobres ficaram com 2%. De facto, desde 1995 que a riqueza dos indivíduos mais ricos tem crescido entre 6 a 9% por ano, comparativamente com o crescimento de riqueza média anual, que se situa nos 3,2%.
O Relatório elabora uma interessante análise sobre as desigualdades de género, disponibilizando uma primeira estimativa acerca do rendimento do trabalho feminino no mundo, desde 1990 a 2020. Analisando os dados numa perspetiva agregada, é possível compreender que ao longo destas três décadas, a participação das mulheres nos rendimentos globais do trabalho aumentou de 30,6% para 34,7% (+4,1 p.p.). Ainda que em todos os anos o valor tenha aumentado, o facto de, em 2020, as mulheres representarem apenas cerca de 35% do rendimento do trabalho global (em contraponto com os 65% masculinos), demonstra que, também a este nível, as desigualdades de género são muito vincadas. Ao comparar a evolução de 5 em 5 anos, observa-se que entre 2015 e 2020 a evolução é mais reduzida (+0,5 p.p.). Ao analisar esta evolução por regiões, é de notar, antes de mais, que todas as regiões parecem demonstrar um aumento dos valores nos últimos anos, à exceção da China, que tem vindo a diminuir consistentemente a sua percentagem desde 1990. A região que em 2020 apresentava valores mais elevados era a Rússia e Ásia Central (cerca de 40%) e a região com valores mais reduzidos era o MENA (cerca de 15%). Todas as regiões se situam abaixo dos 50%, valor que representaria uma igualdade de género relativamente aos rendimentos do trabalho.
Segundo os autores do relatório, as desigualdades de rendimento e de riqueza mundiais acompanham as desigualdades ecológicas e as desigualdades nas contribuições para as alterações climáticas. De facto, e analisando as emissões de CO2 de uma forma global, os 1% mais ricos emitem 17% das emissões e os 10% mais ricos emitem 48%, enquanto que os 50% mais pobres apenas emitem 12%.
De facto, e como também se pode se verificar numa notícia lançada pelo Observatório das Desigualdades em 2021, tanto o relatório de Chancel (2021) – cujos dados são também utilizados neste relatório –, como o relatório da Oxfam International e do Institute for European Environmental Policy (2021)[2], revelam que “a desigualdade global na emissão per capita deve-se a acentuadas desigualdades na média de emissões entre países (ou regiões) e também devido a desigualdades mais expressivas nas emissões dentro de cada país (ou regiões)” (Cândido, 2021).
Ao analisar estas desigualdades por regiões, é notória a diferença de emissões entre os 10% mais ricos da América do Norte (73 toneladas per capita por ano) e os 10% mais ricos das restantes regiões, sendo os mais distanciados os 10% mais ricos da África subsariana (7,3 toneladas per capita por ano). As diferenças entre regiões são relativamente consistentes, na medida em que a América do Norte apresenta valores tendencialmente mais elevados tanto para os 10% mais ricos (73 toneladas per capita por ano), como para os 40% do meio (21,7 toneladas per capita por ano ) ou para os 50% mais pobres (9,7 toneladas per capita por ano ), seguido do este asiático (38,; 7,9; 3,1, respetivamente), da Rússia e Ásia central (35,1; 10,2; 4,6, respetivamente), do MENA (33,6; 7,3; 2,3, respetivamente), da Europa (29,2; 10,6; 5,1, respetivamente), da América latina (19,2; 4,7; 2, respetivamente), do sul e sudeste asiático (10,6; 2,5; 1, respetivamente) e da África subsariana (7,3; 1,7; 0,5, respetivamente). É, portanto, de referir as diferenças muito significativas entre os 10% mais ricos e os restantes, sobretudo os 50% mais pobres, em todas as regiões, não se tratando apenas de um problema de países ricos e países pobres, uma vez que os 10% mais ricos de todas as regiões registam valores elevados de emissões, sendo quase sempre mais elevados que os 50% mais pobres de qualquer região, inclusive na comparação dos 10% mais ricos dos países pobres versus os 50% mais pobres dos países ricos. Assim, os autores concluem que as políticas climáticas relativas às emissões devem estar orientadas para os poluentes mais ricos (nomeadamente os 10% mais ricos), ao invés das populações mais pobres ou intermédias, como as taxas sobre o carbono, na medida em que estes são muito menos poluentes e já se encontram, tendencialmente, nas metas climáticas para 2030, apontadas pelos países ricos.
Os Estados de bem-estar social modernos erguidos no século XX, associados a progressos notáveis na saúde, na educação e no incremento das oportunidades para toda a população, foram alcançados graças ao aumento da tributação progressiva. Neste sentido, os autores defendem que será necessária uma evolução similar no século XXI, de forma a responder aos desafios deste século[3].
O World Inequality Report anterior (Facundo et al., 2018), publicado em 2018, defende que a subida gradual das desigualdades de rendimento e de riqueza, observados desde 1980, são fruto de escolhas políticas, centradas em programas de desregulação e liberalização das economias. Quatro anos passados, este relatório reforça essa tese, assinalando que as desigualdades são uma escolha política, sendo necessário aprender tanto com as políticas já implementadas em diversos países, como com outros momentos históricos, de forma a repensar caminhos de desenvolvimento mais justos.
Referências Bibliográficas
[1] No original, “Middle 40%”, que corresponde aos 40% da população entre os 10% mais ricos e os 50% mais pobres.
[2] É possível consultar uma notícia acerca destes relatórios em https://www.observatorio-das-desigualdades.com/2021/11/11/19354/
[3] Para aprofundar a discussão acerca da tributação, além do relatório em análise, aconselha-se a consulta do The State of Tax Justice 2021 e do artigo de Susana Peralta no jornal “Público”, intitulado “Os impostos que os ricos não pagam e o que podíamos fazer com eles”, que aprofunda a discussão entre os dois relatórios.