Artigo publicado no Jornal Económico, consultar aqui

A classe média não é para todos, por Renato Miguel do Carmo

Apesar de se ter popularizado nos meios de comunicação social, o conceito de classe média sempre foi, do ponto de vista sociológico, relativamente ambíguo e difícil de operacionalizar, ultrapassando largamente a dimensão dos rendimentos e da riqueza. Contudo, não me recordo de se ter usado e abusado tanto deste conceito como nos últimos dias. E tudo a propósito de diversas propostas fiscais que surgiram no espaço público, designadamente, a de maior progressividade nos escalões de IRS e de um novo imposto sobre património imobiliário que ultrapasse o valor de 500 mil euros.

Para alguns dos mais mediáticos comentadores e políticos, estas medidas significam um ataque à classe média, que, segundo estes, perderá rendimento e, por esta via, caminhará para uma pauperização crescente que, a prazo, terá impactos na sua capacidade de investir e de empreender. É, no mínimo, estranha esta conceção de classe média num país que continua a ser dos mais desiguais da Europa e onde a distribuição de rendimento espelha uma vincada assimetria que não só persiste como se acentuou nos anos de austeridade: em Portugal, os 10% mais ricos da população auferem quase 11 vezes mais rendimento que os 10% mais pobres. A distância entre estes dois escalões aumentou de 2010 a 2013.

A desigualdade é um traço estrutural da nossa sociedade e que se reproduz ao longo de décadas. Várias causas têm contribuído para esta realidade, como, por exemplo, a relação entre a desigualdade e o ciclo de pobreza que se intensificou com o crescimento do desemprego ou a persistência dos baixos salários que se aprofunda com a generalização da precariedade. Contudo, outras dinâmicas aconteceram no topo que determinam a perpetuação deste nível de desigualdade. Na verdade, foi também em Portugal que, entre os anos de 1980 e os anos 2000, se deu um dos maiores crescimentos na proporção de rendimento detido pelos percentis do topo.

Poderia dizer, em tom irónico, que este aumento galopante e continuado ao longo de anos tornou-se algo tão comum na vida de uma minoria privilegiadíssima que virou hábito, de tal modo que desfocou irremediavelmente a visão que esta foi criando do país em que vivia. Afinal, com a exceção da camada dos pobres, a classe média parecia ser mesmo para todos…

Não será muito arriscado afirmar que, muitas das pessoas que apregoaram o fim da classe média, no caso das tais propostas fiscais irem por diante, situam-se na parte mais próxima do topo da pirâmide dos rendimentos, mas não conseguem olhar para o país de cima para baixo. Olham para o lado e deparam-se com uma classe (a sua) que agora consideram estar em risco de minguar. Chega quase a ser anedótico, mas tudo isto é sintomático de como a desigualdade se entranhou e se naturalizou na vida social e económica deste país. Cabe à política quebrar o ciclo e repor alguma justiça na distribuição de rendimentos entre as efetivas classes sociais. Talvez desta maneira o topo perceba que se encontra, de facto, no topo e que, em termos patrimoniais e de rendimento, a sua situação está a milhas da média.

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