Artigo publicado em Jornal Económico (ver aqui)
A composição assimétrica da estrutura salarial das empresas representa um dos motores mais determinantes para a persistência e o aumento da desigualdade social.

Nas últimas semanas foram conhecidos vários relatórios produzidos por diferentes instituições sobre desigualdades salariais e níveis de precarização que atingem uma percentagem crescente da força de trabalho. A este respeito, o Relatório Global sobre os Salários 2006/17, produzido pela OIT, revela que Portugal não só continua a ser um dos países mais desiguais da Europa, como o nível de disparidade salarial representa um dos fatores que mais contribui para essa persistência.  Desde logo, o nosso foi dos países onde a proporção dos salários face ao rendimento nacional mais diminuiu, passando de 60% do total do rendimento nacional em 2003 para os 52% em 2014. Por outro lado, Portugal detém uma das maiores desigualdades salariais ‘entre empresas’ e ‘dentro das empresas’. Estes dois dados articulados identificam um profundo desequilíbrio na estrutura salarial que afeta a composição do mercado de trabalho.
Tendo em conta estas e outras dualidades persistentes, é possível enunciar uma espécie de paradoxo sobre a crescente desvalorização do trabalho que atinge várias economias, incluindo a portuguesa: à medida que o rendimento do trabalho perde proporcionalmente em detrimento de outras fontes de rendimento (designadamente do capital), verifica-se, ao mesmo tempo, que a disparidade salarial se vai tornando mais assimétrica com benefício para os escalões de rendimento de topo. Esta tendência que se apresenta aqui como uma hipótese de trabalho, carecendo de uma verificação mais fina e pormenorizada, revela uma tremenda desigualdade e desvalorização que atinge duplamente os trabalhadores a auferir salários baixos e médios.
Na verdade, se a perda do peso dos salários face ao rendimento nacional, a primeira parte do paradoxo, deve-se fundamentalmente, mas não exclusivamente, ao aprofundamento da ‘financeirização’ do capitalismo e da globalização da economia, já a segunda parte resulta de um incremento continuado dos ganhos salariais do topo face à quase estagnação do valor dos salários baixos e médios. Obviamente que para este último fator também contam as dinâmicas globais, contudo, são a causas internas aquelas que mais explicam a forte polarização salarial.

Poderíamos enumerar várias, mas uma das causas apresentadas pelo estudo da OIT refere-se ao facto de serem precisamente os países com maior desigualdade salarial ‘entre empresas’ aqueles que têm maior desigualdade ‘dentro das empresas’. Isto é, se, por um lado, aumenta o hiato entre as empresas que vivem à custa dos baixos salários daquelas que apresentam estruturas salariais mais equilibradas, por outro lado, assiste-se no interior das empresas a uma maior polarização entre os ganhos remuneratórios do topo em relação aos da base.
A esta polarização associam-se as desigualdades entre cargos de chefia e de direção das restantes funções, entre os mais qualificados dos menos qualificados, entre os homens e as mulheres, etc. As dualidades são tão numerosas e de tal maneira multidimensionais que se tornam impossíveis de caracterizar devidamente no espaço deste artigo. Todavia, a ideia que convém reter é que a composição assimétrica da estrutura salarial das empresas representa um dos motores mais determinantes para a persistência e o aumento da desigualdade social.
Neste momento um dos fenómenos que contribui para alimentar este motor é, sem dúvida, o recurso cada vez mais frequente a formas de contratação precárias e que têm efeitos na compressão salarial dos trabalhadores afetados. Segundo o Relatório de Progresso do Grupo de Trabalho para Preparação de um Plano Nacional contra a Precariedade, divulgado na semana passada, dos novos contratos de trabalho celebrados somente “um em cada cinco são permanentes e, em sentido inverso, cerca de 20% são contratos de curta duração (inferior a 60 dias)”. Este e outros dados caraterizados pelo relatório apontam para o facto da criação de emprego, embora ainda ténue, se estar a fazer, em grande parte, à custa da contratação precária e sem direitos de proteção social.
Significa isto que novas dualidades estão a emergir com muita força no mercado trabalho e se vêm juntar às anteriores. Uma destas passa precisamente pela generalização, dentro da mesma empresa ou instituição pública, de situações salariais e contratuais muito díspares para funções e cargos idênticos. Ou seja, colegas de trabalho com as mesmas qualificações e as mesmas responsabilidades poderão auferir salários muito distintos enquadrados em contratos com direitos diferentes. Esta prática para além de ser inconstitucional, quebrando claramente o princípio “para trabalho igual salário igual”, deverá ser interrompida pela via da ação política e governativa. Se isso não acontecer, as empresas não cessarão de alimentar o motor da desigualdade e de desvalorizar ainda mais o trabalho por contraposição aos rendimentos do capital… e quanto melhor funcionar este motor perverso, mais perdem as sociedades e as economias.

Por Renato Miguel do Carmo