Joaquim Caeiro doutorou-se em ciências sociais e políticas pela Universidade Técnica de Lisboa. É professor no Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa e na Universidade Lusíada. É coordenador do Centro Lusíada de Investigação em Serviço Social e Intervenção Social e director da Revista Intervenção Social. É o autor da obra Políticas Públicas, Política Social e Estado Providência (2008).

 

 

Observatório das Desigualdades: Um dos objectivos cimeiros das políticas sociais é o da redução das desigualdades e tensões sociais. É curioso verificar que uma das críticas que se podem desvendar no discurso político ao providencialismo estatal prende-se com as desigualdades que as políticas sociais podem promover entre grupos desfavorecidos da população: por exemplo, os beneficiários do Rendimento Social de Inserção face aos pensionistas. Podem as políticas sociais impulsionar elas próprias tensões entre grupos sociais?
Joaquim Caeiro: A resposta a esta questão é desde logo positiva: sim, a existência de tensões de natureza social é uma das decorrências das políticas sociais. Estas são instrumentos de que o poder se serve em cada momento e em circunstâncias determinadas, para induzir grupos mais ou menos específicos (entenda-se, aqueles que apresentam uma maior capacidade de influência) ao apoio da sua sede de exercício do poder político. Isto significa que em todos os quadrantes políticos (ainda que de forma desigual, entenda-se) se usam as políticas sociais para ir ao encontro das reivindicações e pressões desses grupos sociais (os quais podem também estar mais ou menos organizados) e assim captar o seu apoio na conquista e exercício do poder político. Neste domínio, as políticas sociais acabam por servir interesses eleitoralistas e de apoio ao(s) partido(s), da área do poder em primeiro lugar, mas também, aos que se perfilam para em tempo mais ou menos curto, pressionar a sede do poder. São exemplo do que se afirma, as propostas eleitorais que os partidos políticos concorrentes às eleições legislativas de 2009 apresentaram no seu quadro programático. Todos, sem excepção, apresentaram propostas de medidas de intervenção social, orientadas para os grupos sociais da sua esfera de influência, mas também para os potenciais candidatos a nela se integrarem: desempregados, idosos, famílias, minorias étnicas e sociais, excluídos, etc.
De outro modo, ao contribuírem para a instrumentalização dos grupos sociais e dos indivíduos isoladamente, as políticas sociais acabam por provocar tensões, algumas com grande intensidade, e com impactos de médio/longo prazo imprevisíveis, porquanto conduzem quase sempre a uma desigualdade de tratamento entre cada um dos contemplados. Se se privilegiam os desempregados, através do mecanismo do subsídio de desemprego, necessariamente (o custo de oportunidade é inexorável) se sacrificará o grupo de pensionistas, o das crianças em risco ou o grupo das minorias, etc (pois os recursos, como são escassos, implicam escolhas).
Por outro lado, as tensões sociais manifestam-se no seio dos próprios grupos, porque existe uma perspectiva individual e até egoísta de cada um deles, em relação ao que se deve atribuir maior preponderância e à defesa de que as suas necessidades sociais são sempre mais evidentes do que as dos outros.
As tensões sociais, manifestam-se em muitas circunstâncias, e têm ganho relevo ultimamente os problemas de alguns bairros sociais onde os grupos rivais recorrem à violência para marcar a sua posição e a sua importância no contexto da satisfação das necessidades sociais.
Ainda neste contexto, as tensões acabam também por surgir não apenas entre os grupos beneficiados mas entre estes e aqueles que têm dificuldade em aceitar a importância e a necessidade do usufruto de tais benefícios. Ressalta aqui a problemática do Rendimento Social de Inserção e da legitimidade de muitos dos que o recebem. E também a questão do subsídio desemprego, que muitos continuam a defender ser um incentivo à preguiça, dada a incapacidade da fiscalização e face aos expedientes utilizados para a sua atribuição.
As tensões sociais são assim de natureza interna e externa aos grupos pelo que, em circunstância alguma (apenas numa perspectiva ideal se poderia aceitar o contrário), sendo as políticas sociais geradoras de tensões e/ou conflitos sociais, poderão conduzir a uma situação igualitária na sociedade, antes impondo a exclusão de grupos sociais face a outros. E, nem sempre os resultados que se pretendem alcançar são alcançáveis, derivando daí muitas vezes o reforço da posição dos mais privilegiados ou a permissão de transferências de recursos de um grupo para outro, com prejuízo de um deles.
OD: A crise internacional parece ter reforçado a legitimidade do poder de regulação do Estado face aos mercados e a importância do seu apoio em relação às populações mais necessitadas. Isto significa que as teses neoliberais de que fala no seu livro ?se dissolveram no ar??
JC: Não concordo com a perspectiva de que o neo-liberalismo se tenha ?dissolvido no ar?, pelo simples efeito da actual crise económica e financeira que atravessa o mundo contemporâneo. E, tal deve-se de imediato à minha não concordância com a tese da ?morte das ideologias? ao jeito dos anos sessenta, por um lado, e pelo outro, porque a realidade concreta não conduz necessariamente a um aumento do poder de intervenção do Estado (a não ser pontualmente e em circunstâncias também concretas) face à sociedade.
Quanto ao primeiro aspecto, concordo que em determinados momentos históricos e com o fundamento em estratégias de conquista do poder dos grupos organizados para o efeito (os partidos políticos, principalmente) e bem assim, dos agrupamentos sociais preferenciais que em cada grupo social preponderam (entenda-se aqui o mecanismo de circulação das elites ao modo de V. Pareto e G. Mosca), se verifique um ?apaziguamento ideológico?, o qual tende a impor a determinadas ideologias uma diminuição da sua influência e pressão, muitas vezes estratégica.
Foi assim com o liberalismo no pós segunda guerra mundial, em detrimento do modelo de welfare state, e foi-o também a partir da década de setenta, com o declínio daquele modelo e a ascensão dos modelos liberais e neo-liberais, sobretudo nos EUA e Grã-Bretanha, e da mesma forma que hoje se assiste a uma preponderância das teses intervencionistas em prejuízo das que apontavam a ausência de Estado e o impulso fundamental do mercado.
No que se refere ao segundo aspecto, basta lembrarmo-nos das eleições legislativas recentes em Portugal, cujos resultados atribuem ao CDS-PP e ao PSD cerca de 40% dos votos expressos. Isto mostra, que cerca de 40% do eleitorado nacional, não se mostra aberto a uma intervenção dinâmica e absoluta do Estado no mercado e opta por apoiar os partidos que apresentam propostas alternativas àquela intervenção valorizando a iniciativa privada e como corolário reduzindo a intervenção social do Estado.
Resulta, pois, que os partidos mais próximos da área liberal (PSD) e neo-liberal (CDS) mobilizam parte substancial dos eleitores nacionais e, por conseguinte, o intervencionismo do Estado no mercado e especificamente na área social, não se alongará muito mais, quer porque a resistência a tal intervenção foi e continuará intensa, quer porque tal intervenção dependerá cada vez mais do Orçamento do Estado e este depende quase exclusivamente dos contribuintes.
O quadro ideológico tender-se-á a manter com adaptações pontuais face às convulsões económicas e sociais dos mercados, e continuar-se-á a perspectivar a espontaneidade do equilíbrio do mercado e, por consequência, a acreditar-se que a intervenção do Estado estruturalmente é má, resultando daí um acréscimo de desigualdades sociais que apenas sem ele se poderão corrigir, por contraposição com os que entendem o Estado como o ?salvador? do mercado e o instrumento da promoção da igualdade social e da inclusão social.
OD: É correcta a associação entre o conceito de política social e o pensamento político dos partidos de esquerda? Qual a intensidade e validade dessa associação no caso Português?
JC: A eventual relação entre a política social e a ideologia de esquerda não passa, em meu entender, de um mito que se pretende divulgar na sociedade com o intuito de mobilização da sede social de apoio, relativamente aos partidos políticos ditos de esquerda e com isso, a pretensão de almejar melhores resultados eleitorais, à custa dos desequilíbrios estruturais ou conjunturais que se fazem sentir em todas as sociedades.
Na realidade, a política social, enquanto actividade do Estado no sentido da promoção do bem-estar social dos cidadãos é transversal a todas as ideologias (com excepção das doutrinas libertárias mais radicais de que R. Nozick foi um dos principais mentores), variando apenas na forma de o fazer e na intensidade que se atribui ao papel do Estado.
O pensamento de alguma esquerda, autoritária e com auspícios totalitários, não tem em nenhuma circunstância qualquer relação com a política social, no sentido que comummente se lhe atribui, porquanto deriva da sua própria natureza ideológica o recurso ao Estado como simples instrumento para alcançar objectivos finalísticos que se traduzem numa milenarista igualdade onde o bem-estar de todos decorre do sacrifício de apenas alguns. E, em última instância, prevendo-se o desaparecimento do Estado e logo da política social, a qual deixaria de fazer sentido.
O caso português é bem exemplo do que se afirma. A política social, não é de perto nem de longe, apanágio dos partidos de esquerda, antes pelo contrário. As responsabilidades pelo desenvolvimento da política social em Portugal cumprem, em exclusivo, aos partidos do Centro (quer seja de direita, quer seja de esquerda), enquanto os restantes partidos com assento parlamentar (BE e CDU) têm apenas como método o da pressão, mormente em períodos mais desfavoráveis do ponto de vista económico e financeiro, ou no sentido de dar voz aos grupos sociais párias a partir de lideranças tipicamente burguesas e assim a inscrever os seus programas eleitorais com promessas kantianas de paz perpétua e igualdade social milenar.
A criação e desenvolvimento da Segurança Social, dos mecanismos de apoio aos idosos, às grávidas e à maternidade, passando pelo Rendimento Social de Inserção e pelo subsídio de desemprego, não são realizações da esquerda portuguesa, mas do bloco central, que em cada momento e no exercício do seu tempo de governação foi criando tais instrumentos de intervenção social.
As políticas sociais são estruturalmente medidas que visam corrigir desequilíbrios e promover a redistribuição dos resultados de cada sociedade em prol do seu bem-estar geral criando capacidades e competências nos indivíduos para assumirem eles próprios a satisfação das suas necessidades. Donde, não podem ser atribuídas a uma ideologia preponderante, mas antes a um conjunto de circunstâncias, tais como o desenvolvimento das sociedades, a riqueza que se cria em cada momento, a existência de solidariedade entre os seus membros e à capacidade daqueles que exercem o poder.
OD: As políticas sociais do Estado são necessariamente políticas públicas. Mas qual a intersecção destas duas esferas da acção do poder executivo?
JC: Julgo que a intersecção destas duas esferas da acção do poder é constante, ainda que em determinados aspectos se verifique convergência e dificuldade na sua separação. A política social enquanto política pública, é-o do ponto de vista estratégico, ou seja, cumpre ao Estado a definição dos grandes objectivos macro e micro económicos e propor os meios e instrumentos de os alcançar.
Quanto ao resto, em qualquer modelo de welfare state, tanto pode ser o Estado a concretizar tais objectivos (um modelo tipicamente mais intervencionista, como é o modelo nórdico), como pode delegar amplamente na sociedade civil tal concretização (é o caso dos modelos continental e anglo-saxónico).
A política social pode e tem-se afirmado a partir do designado welfare-pluralism, onde o Estado, a sociedade civil e o mercado, se orientam enquanto actores sociais no sentido da promoção de bem-estar social dos indivíduos e respectivos agregados familiares. São exemplo, as instituições de economia social, que englobando várias formas face às características socio-culturais da sociedade e que em Portugal estão representadas por vários tipos de associações, tais como as IPSS, as misericórdias, as fundações ou as cooperativas e que têm como função a provisão de bem-estar na sociedade.
E, ao mercado, cumpre a responsabilidade aquando da delegação do Estado de parte das suas responsabilidades de produção, garantindo aquele o fornecimento de bens que proporcionam bem-estar aos cidadãos e que decorre da sua maior eficiência e racionalidade em tal produção. São exemplo, as parcerias público-privadas ou os serviços prestados no sector privado e comparticipados pelo Estado.
Quanto às políticas públicas, elas não têm necessariamente de ter um efeito social ainda que o possam ter de forma tendencial, privilegiando aspectos mais abrangentes, como seja a promoção da cultura, da saúde ou a educação. Mas, a política pública é sempre uma actividade do Estado cuja implementação directa ou indirecta visa obter um efeito fundamental na vida dos cidadãos, que embora se reflicta no âmbito social, não é este que procura em primeira instância.
OD: A política social enquanto área disciplinar tem alguma autonomia analítica e de objecto de estudo em relação às demais ciências sociais?
JC: O objecto de estudo da política social tem vindo a adquirir sucessiva autonomia face às restantes ciências sociais, sobretudo a partir da década de setenta do século XX. No entanto, porque no contexto universitário e científico continua a depender em muito da sua natureza interdisciplinar e do recurso sistemático às outras ciências sociais do ponto de vista analítico e conceptual, ainda não conquistou foros de total autonomia científica.
No que a Portugal respeita, a política social faz parte de planos de estudos de vários ciclos de estudo, mas não se assumiu (com excepção do ISCSP, mas que recentemente renunciou à designação de curso de licenciatura em Política Social, para a de Serviço Social), como um plano de estudos alternativo.
Sendo a política social, enquanto disciplina científica iminentemente instrumental, quer da ciência política quer da economia, resulta uma redução do seu espaço autonómico e da sua dificuldade em se assumir com total espaço de intervenção.
E, porque se destina a promover o bem-estar social e a reduzir as tensões sociais, pela via da satisfação das necessidades sociais individuais e colectivas, a política social assume um carácter pragmático de intervenção e acção, o que dificulta também a sua autonomia científica.
Os vários ângulos de análise da política social (económico, sociológico, ciência política, etc.), apresentando perspectivas de análise diferenciadas também contribuem para o menor desenvolvimento da sua autonomia analítica e de objecto de estudo.
Finalmente, estando a política social integrada na actividade do Estado face à sua preocupação com o bem-estar social dos indivíduos, ela é muitas vezes vista mais como um conjunto de propostas daquela entidade do que como um conjunto estruturado de questões científicas e académicas com vista a encontrar soluções e objectivos, identificados e acreditados.