Heloísa Perista é socióloga e investigadora do Centro de Estudos para a Intervenção Social (CESIS). As problemáticas da igualdade de género, conciliação trabalho e família e a protecção na parentalidade são algumas das suas áreas de especialização científica. 

 

Observatório das Desigualdades: Vários estudos revelam que apesar de os homens trabalharem em média mais horas do que as mulheres em actividades remuneradas, o tempo despendido por aquelas em trabalhos não remunerados (nomeadamente no trabalho doméstico ou no apoio a familiares) é muito superior ao dos homens. A partir dos dados de que dispõe, qual a actual diferença entre o número de horas diárias de trabalho, remunerado e não remunerado, despendidas por homens e mulheres e como é que esta tem evoluído nos últimos anos?

Heloísa Perista: Importa antes de mais referir que em relação à situação portuguesa temos um problema grave que tem a ver com a inexistência de informação estatística que nos permita traçar um retrato tão actualizado quanto possível desta situação. O último inquérito que foi realizado em Portugal à ocupação do tempo aconteceu em 1999 e não tornou a ser repetido, ao contrário do que estava inicialmente previsto. O que esse inquérito e outras fontes de âmbito europeu confirmam é que do ponto de vista do trabalho pago há uma aproximação muito evidente entre o tempo que mulheres e homens dedicam à actividade profissional. Embora os homens dediquem em média por dia mais uma hora ao trabalho pago do que as mulheres, quando se introduz as questões do trabalho não pago, ou seja, das tarefas domésticas e os cuidados à família, as diferenças são ainda muito evidentes em desfavor das mulheres. Quando olhamos para os dados de 1999 do Inquérito à Ocupação do Tempo, e se junta o trabalho pago e não pago, chegamos a um valor de sobretrabalho feminino de 1h22 minutos em cada dia. Este é um dado que não é possível actualizar ao nível das estatísticas nacionais, na medida em que este inquérito não voltou a realizar-se. Mas existem outras fontes, quer fontes estatísticas não oficiais (estudos que têm sido feitos), quer fontes de natureza internacional, nomeadamente europeias, que permitem não só actualizar esta informação para o caso português, como pôr o caso português em contexto. Se olharmos para o Inquérito Europeu Sobre as Condições de Trabalho realizado em 2005, o panorama da situação portuguesa não se altera significativamente face a 1999, o que faz antever que estamos perante questões que são de natureza estrutural e cuja evolução tem sido muito lenta ao longo dos últimos anos. É claro que estamos a falar de valores médios para a população empregada. Quando consideramos o nível de instrução, as classes de rendimento ou outros elementos de diferenciação social, aí estes valores médios variam, embora as assimetrias de género tendam a manter-se.

OD: Tendo em conta os resultados desse Inquérito Europeu Sobre as Condições de Trabalho, qual é a situação de Portugal no contexto dos países da União Europeia no que às desigualdades na distribuição dos tempos de trabalho entre homens e mulheres diz respeito?

HP: Há uma característica distintiva: as mulheres em Portugal têm um tempo de trabalho pago muito superior à média dos restantes países europeus. Como é sabido o trabalho a tempo inteiro entre as mulheres é muito mais significativo em Portugal do que noutros países da União Europeia. Mesmo assim, contabilizando o tempo de trabalho pago e não pago, o gap da afectação de tempo de mulheres e homens é maior em Portugal do que em termos médios na Europa. Isto é confirmado por outras fontes, nomeadamente pelo European Quality of Life Survey, de 2007/2008. Portugal é um dos países onde estas diferenças de género são mais acentuadas, nomeadamente no que diz respeito às tarefas mais rotineiras e mais exigentes ao nível do dispêndio de tempo no quotidiano, como cozinhar ou tratar da roupa.

Uma desigualdade transversal e naturalizada

OD: De acordo com um estudo por si realizado, a desigualdade na distribuição das tarefas domésticas afecta também as mulheres inseridas numa trajectória profissional académica, com qualificações e remunerações acima da média, portanto. Pensa que este fenómeno tende a ser transversal a toda a estrutura social?

HP: É completamente transversal, mas vai assumindo contornos um pouco diferentes. Nesse trabalho, que se centrou em mulheres e homens envolvidos em carreiras científicas, e a um nível pós-graduado, verificou-se que mesmo nesse grupo com características muito distintas da população portuguesa em geral, as assimetrias ao nível de quem faz e de quem assume a responsabilidade pela gestão do espaço e das tarefas domésticas continuam a ser bastante evidentes. Quando olhamos para as fontes estatísticas essas assimetrias surgem mais esbatidas nestas categorias socio-profissionais, não só porque os homens tendem a participar um pouco mais, mas sobretudo porque estas são famílias que têm capacidade para externalizar boa parte das tarefas domésticas.

OD: Este tipo de fenómenos assenta numa evidente naturalização das desigualdades. As mulheres acabam por assumir as tarefas domésticas como sendo da sua responsabilidade…

HP: O processo de naturalização é um processo que atravessa toda a estrutura social: há naturalização por parte das mulheres, por parte dos homens e tem sido naturalizado também por algumas políticas públicas, que continuam a assumir como responsabilidade das famílias a prestação de cuidados, por exemplo. Nalgumas situações continua-se a pensar a família como tendo uma capacidade para assumir responsabilidades ao nível do trabalho de cuidar que já não existe.

OD: No contexto dos países da União Europeia, Portugal é dos países com uma das mais altas taxas de actividade feminina, principalmente entre as mulheres que concluíram o ensino superior. Pensa que o capital escolar poderá funcionar como um recurso fundamental para a progressiva diminuição das desigualdades de género na distribuição do trabalho doméstico?

HP: Essa é uma dimensão fundamental para a qualificação de qualquer pessoa e terá certamente influência nos padrões de integração no mercado de trabalho. O que temos constatado em Portugal e em estudos feitos noutros países é que se esses processos não forem acompanhados por medidas deliberadas, por exemplo, de dessegregação sectorial e profissional do mercado de trabalho ou de luta contra a discriminação salarial, os efeitos positivos do capital escolar das mulheres tendem a diluir-se. Voltando ao exemplo do gap salarial, verifica-se que é sobretudo entre as categorias profissionais mais qualificadas, nomeadamente entre os Quadros Superiores, que as diferenças salariais entre mulheres e homens são mais acentuadas.

Conciliação trabalho/família e políticas públicas para a igualdade de género

OD: Um dos debates actuais associados à desigualdade na distribuição das tarefas domésticas entre homens e mulheres prende-se com a activação de estratégias que permitam uma melhor conciliação entre o trabalho e a esfera doméstica. Diferentes situações e medidas, tais como o trabalho a tempo parcial, o trabalho a partir de casa, ou as prestações sociais que permitem uma ausência mais prolongada das mulheres do mercado de trabalho, são exemplos disso mesmo. Até que ponto a criação de condições que permitam uma melhor conciliação entre estas duas esferas pode contribuir para um aprofundamento das desigualdades de género na distribuição do trabalho doméstico?

HP: O trabalho a tempo parcial tem sido encarado como uma solução muito parcial (risos) para estes problemas. Quando se recorre ao trabalho a tempo parcial são principalmente as mulheres que o fazem, e isso é uma realidade transversal a todos os países onde o trabalho a tempo parcial tem uma expressão significativa. E isso faz com as desigualdades na afectação de tempo ao trabalho de cuidar sejam ainda mais acentuadas. Por outro lado, quando se fala em prestações sociais que permitem ausências muito prolongadas do mercado de trabalho essa não é, do meu ponto de vista, a melhor solução. Em particular porque a partilha por homens e mulheres, embora seja encorajada por lei, continua a ser ainda relativamente reduzida. São as mulheres que acabam por estar mais tempo fora do mercado de trabalho, com todas as implicações que daí decorrem, nomeadamente implicações na progressão na carreira ou na actualização de conhecimentos e competências. Por outro lado, relativamente ao trabalho a partir de casa, um dos riscos que têm sido evidenciados pela pesquisa tem a ver com um maior isolamento das pessoas face a colegas e à comunidade. Outra coisa diferente é a possibilidade de pontualmente se poder trabalhar a partir de casa. Essa sim é uma medida que se tem revelado extremamente útil nalgumas situações como meio de facilitação da conciliação do trabalho com a vida familiar e pessoal. Não de uma forma permanente, mas pontualmente, em casos de necessidade. Esta avaliação positiva é feita tanto do ponto de vista da entidade empregadora, que considera que as pessoas acabam por conseguir produzir um muito bom trabalho a partir de casa, quer por parte dos homens ou das mulheres que beneficiam deste tipo de possibilidade, porque conseguem gerir melhor os seus tempos de trabalho pago e não pago.

OD: Que avaliação faz das alterações ao regime da licença parental?

HP: Penso que não é ainda possível fazer uma avaliação, por se tratar de uma legislação muito recente. Mas de qualquer modo, ao nível do espírito da lei, na minha opinião este é um dos caminhos a seguir. Esta lei é um motor de mudança social, porque cria incentivos aos homens pais para partilharem os tempos de licença com as mães. E isto com vantagens evidentes tanto para as mulheres como para os homens – que assim têm maiores possibilidades de exercerem os seus direitos à parentalidade, mas também para as crianças, que podem beneficiar da presença da mãe e do pai nos primeiros meses de vida. Este é um caminho que em Portugal tem vindo a ser prosseguido desde 1999. Portugal foi pioneiro quando na lei de protecção da maternidade e da paternidade de 1999 criou uma medida de acção positiva dirigida os homens pais ao nível daquilo que na altura se chamava licença parental. Na altura essa licença não era subsidiada e por isso mesmo muito poucas pessoas dela usufruíam. Mas se os primeiros quinze dias da licença parental fossem assumidos pelo pai então eram pagos a 100%. Esse caminho foi agora aprofundado com a nova lei da parentalidade, que vem diluir os conceitos de maternidade e de paternidade, mas vem criar um novo conceito de protecção da parentalidade. Na nova lei há um incentivo claro à partilha da licença parental por mães e pais por diferentes vias, seja pelo aumento da duração da licença, seja pelo aumento do valor do subsídio correspondente.