Sabia que o rendimento dos 1,75% mais ricos do globo equivale ao recebido pelos 77% mais pobres?
O capítulo I começa com uma breve apresentação de algumas das mais influentes aproximações teóricas à problemática das desigualdades. O autor explicita neste ponto algumas formulações teóricas que procuraram responder a questões como: até que ponto o nível de desigualdade é influenciado pelo nível de riqueza das sociedades? Qual o impacto das desigualdades na eficiência económica? Qual a relação entre justiça e desigualdades? Nesta última questão, são introduzidos os contributos do pensamento de Anthony Atkinson, Pareto, Amartya Sen e John Rawls. Debruça-se depois sobre a medição das desigualdades, nomeadamente sobre a lógica de construção do coeficiente de Gini e o seu significado estatístico.
Seguem-se 10 “vinhetas”, nas quais a problemática das desigualdades de rendimento é tematizada a partir de interrogações diversificadas e até improváveis. Por exemplo, qual seria a trajectória e posição social de Elizabeth Bennet e Anna Karenina (personagens de romances) se o seu percurso de “vida” tivesse ocorrido na actualidade? Qual o homem mais rico da história? Quão acentuadas eram as desigualdades no império romano ou nos países socialistas? Que consequências podem as desigualdades exercer sobre a unidade política dos países? Ou, qual a lógica de evolução das desigualdades ao longo dos tempos? No que concerne a esta última interrogação, o autor confronta o pensamento de Pareto e Kuznets. Para o primeiro, os níveis de desigualdade na distribuição da riqueza tendem a ser imutáveis, rígidos independentemente do tipo de sociedade em questão; para Kuznets, a evolução das desigualdades de rendimento pode ser representada pela letra U: nas sociedades pré-industriais, menos ricas, as desigualdades eram menores; com a revolução industrial e o respectivo aumento da riqueza e diferenciação funcional as desigualdades de rendimento aumentaram; por último, com a introdução de mecanismos de redistribuição da riqueza e a generalização da educação, essas desigualdades acabaram por diminuir. De acordo com Milanovic ambos têm um pouco de razão: de facto, tende a existir uma certa imutabilidade da porção da riqueza detida por uma minoria da população (nomeadamente os 1% ou 2% mais ricos); mas as desigualdades na distribuição do rendimento variam no tempo e são influenciadas pelas políticas levadas a cabo em cada país.
O capítulo II inicia-se com uma explicitação dos indicadores e metodologias que sustentam a comparação da riqueza entre os países, ocupando-se depois o autor da evolução das desigualdades à escala global. Segundo Milanovic, se a unidade de comparação for o país e o seu PIB per capita, conclui-se que as desigualdades que actualmente existem entre os países são bastante mais pronunciadas face ao verificado antes da Revolução Industrial ou há três décadas atrás. Se se tiver em linha de conta o peso populacional dos países para analisar as desigualdades de rendimento que entre eles existem, essa tendência já não se verifica, devido ao crescimento económico da China e da Índia nas últimas décadas. O autor demonstra, porém, que mesmo estes dois países continuam a divergir economicamente em termos absolutos dos Estados Unidos: em 1980, a diferença do rendimento per capita entre os Estados Unidos e a China era de 25,000 dólares PPP; actualmente essa diferença situa-se nos 37,000 dólares PPP. A esta constatação o autor adiciona outra ideia interessante: ao contrário da previsão feita por alguns economistas, os países pobres não se assumiram como os principais alvos do investimento directo estrangeiro. Em 2007, o investimento directo estrangeiro nos Estados Unidos (240 mil milhões de dólares) foi largamente superior ao valor verificado na China (138 mil milhões), sendo este inferior ao apurado em França e no Reino Unido; e o valor anual do investimento directo estrangeiro na Índia corresponde ao registado nos Estados Unidos numa semana (p. 105).
De acordo com Milanovic, o aumento das desigualdades entre os países do mundo iniciado na segunda metade do século XIX produziu uma realidade que não aquela teorizada por Marx: 80% das desigualdades de rendimento globais são explicadas pelo país onde se vive e não pela classe social de pertença (p. 113). “Why Was Marx Led Astray?” é a primeira “vinheta” do capítulo II. Na seguinte o autor apresenta alguns dados bastante interessantes: os 5% mais pobres dos Estados Unidos situam-se no percentil 68 da distribuição global do rendimento – ao qual pertencem os 5% mais ricos da Índia. Nos restantes ensaios temáticos deste capítulo, o autor analisa, por exemplo, a influência do país de nascimento na variação do rendimento, a desejabilidade ou não de um mundo fechado às migrações ou os rendimentos alcançados por “Três Gerações de Obamas”.
No último capítulo analisa-se a evolução das desigualdades de rendimento entre “os cidadãos do mundo” desde 1988 até 2005. Neste último ano o valor da desigualdade na distribuição do rendimento global, medido através do coeficiente de Gini, é sensivelmente 70. Mas se não for feito um ajustamento entre o valor do rendimento e os preços dos produtos nos vários países, esse valor situa-se em 80. Apresentam-se outros dados impressivos: 10% mais ricos do mundo detêm 56% do rendimento global, enquanto os 10% mais pobres apenas 0,7%; os 5% mais ricos recebem 37% desse rendimento, os 5% mais pobres 0,2%; o rendimento dos 1,75% mais ricos equivale ao rendimento dos 77% mais pobres. De acordo com Milanovic, a desigualdade na distribuição global do rendimento não se alterou significativamente nos últimos 30 anos. Embora o aumento das desigualdades no interior dos países e a divergência ao nível do rendimento médio entre os países pobres e os países ricos tenham potenciado o aumento das assimetrias globais, o crescimento económico de países tão populosos como a China e a índia neutralizou essa tendência.
Nas vinhetas do capítulo III o autor ajuda o leitor a situar-se na distribuição global do rendimento, questiona a existência de uma classe média global e, entre outras tematizações, analisa a relação entre a desigualdade de rendimento e a crise financeira global. “A causa real da crise reside nas enormes desigualdades na distribuição do rendimento, que geraram muito mais fundos de investimento do que o lucro que deles poderia advir. O problema político do crescimento económico insuficiente da classe média foi então ‘resolvido’ através da abertura das comportas do crédito barato. E esta abertura, que visou suportar a classe média, foi necessária porque nos sistemas democráticos um modelo de desenvolvimento excessivamente desigual não pode coexistir com a estabilidade política” (p. 196, tradução própria).
A análise das desigualdades de rendimento no mundo e a sua evolução a partir de dados cujo nível de exactidão é necessariamente bastante diferenciado impõe uma interpretação cautelosa dos mesmos. O autor chama aliás a atenção para isso e explicita de forma bastante acessível e rigorosa os procedimentos metodológicos em que se basearam os seus cálculos. De qualquer forma, os dados apresentados acerca da distribuição dos rendimentos globais são pungentes. E as tematizações promovidas em torno desta problemática bastante criativas e intelectualmente estimulantes. Um livro a ler.