Elaborado por Renato Miguel do Carmo

Tendo em consideração que a taxa de desemprego é um indicador tão sensível sobre a situação social e económica dos países, não fará sentido equacioná-la para a definição da política monetária que tenha verdadeiramente em conta a economia real? 

Em Dezembro passado a Reserva Federal Americana anunciou uma medida que representa uma alteração conceptual na política monetária americana, ao propor a ligação entre o nível de desemprego e as taxas de juro. Considerar a taxa de desemprego como uma variável ativa com impacto na definição das políticas macroeconómicas, parece-me ser um princípio fundamental que pode ser estendido e aplicado a outros setores das políticas públicas.

Uma simples análise da evolução do desemprego registado em Portugal desde Setembro 2008 até ao mês homólogo de 2012, realizada pela equipa do Observatório das Desigualdades, permite verificar que este teve um aumento relevante precisamente a partir do momento em que se dá a queda do banco norte-americano Lehman Brothers, crescendo praticamente 30% até setembro de 2009. Entretanto conhece uma estabilização em 2010, que curiosamente coincide com a implementação de alguns programas públicos de investimento incentivados na altura pelas instituições europeias, e volta a crescer exponencialmente a partir de Setembro de 2011, período que corresponde ao agravamento da crise das dívidas soberanas e às consequentes medidas de austeridade. Será que esta evolução quase linear entre o aumento do desemprego e os ciclos económico-políticos é uma mera coincidência? Não me parece. Numa economia global cada vez interligada e interdependente as várias taxas de medição do desemprego (registado ou por amostragem) tornam-se dos indicadores sociais mais sensíveis para se ter uma noção próxima sobre o impacto das sucessivas crises na economia real.

Na verdade, o desemprego medido significa muito mais do que a produção de um mero indicador que serve para auscultar os efeitos colaterais da presente conjuntura económica. As estatísticas do desemprego para além de revelarem, ainda que de forma incompleta, as consequências sociais devastadoras da presente crise, detêm um significado eminentemente político sobre o falhanço de um modelo que se impõe como garrote sobre a economia e a sociedade portuguesa. Segundo os arautos defensores deste modelo, o desemprego é uma consequência natural desta política que, pela via da austeridade, pretende expurgar a economia dos seus ‘vícios’ e reabilitá-la por meio de consecutivos ‘tratamentos’ de choque. Para estes, um desses vícios é a despesa pública. Aliás, a possibilidade dessa despesa poder significar bom investimento, com retorno para a economia e para o aumento do emprego, é completamente descartada. O investimento público é mau, ponto.

Urge desconstruir e combater este dogma que se abateu sobre a maioria dos governantes que, neste momento, lideram as instituições europeias. Para tal é fundamental afirmar e demonstrar que não é possível relançar a economia sem aumentar o nível do investimento público e que este não deve ser visto como mera despesa. Mas, mais que tudo, é necessário vincar que o investimento público representa uma componente imprescindível para alavancar o próprio investimento privado. Esta ideia de separar o investimento público (que é por natureza mau) do investimento privado (que é sempre bom) é uma completa mistificação (mais uma) sobre o modo como a economia real funciona. Não, meus senhores, a despesa pública pode criar condições para gerar bom investimento privado, desde que não alimente dependências excessivas, como, infelizmente, aconteceu no passado recente.

Bem, dirão alguns, tudo isto é muito bonito, e até óbvio, mas como se pode apostar em mais investimento público quando o tal garrote nos impõe, por exemplo, um limite abaixo dos 3% de défice público? É verdade, a estipulação desta regra (originária do tratado de Maastricht, a partir da qual se permite sustentar uma dívida pública de 60%) que assenta numa arbitrariedade difícil de fundamentar, impede à partida qualquer margem de manobra para uma política expansionista por parte dos Estados, sobretudo, daqueles mais afetados pela recessão. Mas este constrangimento não pode ser encarado, à escala europeia, como mais um dogma inquestionável. Pelo contrário, deve ser fortemente questionado: que sentido faz impor-se o mesmo limite de défice público a uma economia com crescimento negativo e níveis elevados de desemprego, como a outra que cresce e detém uma taxa de desemprego relativamente baixa? Impor a mesma política monetária a países com realidades socioeconómicas completamente diferentes é um delírio em que os líderes europeus nos meteram e que nos tem levado a uma situação completamente insustentável.

Tendo em consideração que a taxa de desemprego é um indicador tão sensível sobre a situação social e económica dos países, não fará sentido equacioná-la para a definição da política monetária que tenha verdadeiramente em conta a economia real? Será assim tão absurdo permitir um défice público a países como a Espanha, Portugal ou Grécia (com taxas escandalosas de desemprego) na ordem dos 5% ou 6%? A ideia de ligar o nível de desemprego à política monetária poderá ser um caminho alternativo. Porque não aplicar a mesma lógica para a definição do défice público ajustado ou indexado à taxa de desemprego vigente em cada país? É claro que esta medida teria sempre de ser implementada em complementaridade com a necessidade de renegociar a dívida externa de forma a atenuar estruturalmente os efeitos perversos do garrote. Pois, de outra maneira, a maior flexibilização do défice público correria o risco de se esfumar, por exemplo, nos juros da dívida. Mas isto daria outro artigo…

Nota: Este texto foi originalmente publicado no jornal Público na edição de dia 13/01/2013.

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