Recensão por: Maria Francisca Botelho
O novo relatório de Desenvolvimento Humano lançado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) coloca o enfoque em várias realidades que têm vindo a causar um enorme retrocesso no desenvolvimento humano, exacerbando as desigualdades sociais de 9 em cada 10 países no Mundo.
O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) lançou, no dia 8 de setembro de 2022, a edição 2021/22 do Relatório de Desenvolvimento Humano, subordinado ao tema “Tempos incertos, vidas instáveis: construir o futuro num Mundo em transformação” (traduzido em português). Na verdade, este novo relatório encerra uma trilogia de relatórios que começa com o Relatório de 2019 sobre as desigualdades no desenvolvimento humano, seguido do Relatório de 2020 sobre os riscos do Antropoceno, onde a Humanidade se tornou uma das principais forças motrizes das perigosas mudanças planetárias.
Efetivamente, o novo relatório da ONU retrata uma sociedade global que oscila de crise em crise e que corre o risco de se encaminhar para uma privação crescente e injusta. Encabeçando a lista de eventos que causam grandes perturbações globais estão a pandemia da Covid-19, que provocou reviravoltas no desenvolvimento humano em quase todos os países do Mundo e que continua a provocar variações imprevisíveis; a invasão russa da Ucrânia, que suscitou mais sofrimento humano no meio de uma Ordem geopolítica repleta de tensões e em plena mutação a que se somaram mudanças sociais e económicas radicais; as mudanças planetárias voláteis e perigosas do Antropoceno que se refletem em temperaturas recorde (que levam ao aquecimento global e, por sua vez, ao derretimento de glaciares na Gronelândia e na Antártida, provocando tempestades, incêndios, secas e inundações); e os aumentos imprevistos e maciços das vacilações das sociedades polarizadas. Juntos, pintam um quadro de tempos de incerteza e de vidas instáveis sem precedentes à escala mundial.
De acordo com o relatório, destaca-se, pela primeira vez nos 32 anos em que o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) o calcula, o primeiro declínio consecutivo do Índice de Desenvolvimento Humano, que tem por base indicadores como população, saúde, educação, emprego, riqueza nacional, segurança e perceção de bem-estar que permitem fazer a medição do IDH de cada Nação e região do Mundo. O desenvolvimento humano caiu para os valores de 2016, revertendo grande parte do progresso em direção ao cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável que compõem a Agenda 2030, o projeto das Nações Unidas que visa garantir um futuro mais justo para os indivíduos e para o planeta Terra. Na verdade, a reversão é quase universal, na medida em que mais de 90% dos países registaram um declínio na sua pontuação no IDH somente no ano de 2020 ou 2021, e mais de 40% em ambos os anos, demonstrando que a crise se aprofundou para muitos países no Mundo, particularmente para aqueles que compõem as regiões da América Latina e das Caraíbas, da Ásia do Sul e da África Subsaariana (que enfrentou secas devastadoras no Chifre de África). A pandemia da Covid-19 veio expor as enormes desigualdades não só da economia global bem como de género. Relativamente às desigualdades da economia global, apesar do desenvolvimento de vacinas eficazes ter sido saudado como uma conquista monumental, creditada por salvar cerca de milhares de milhões de vidas, e como uma demonstração do enorme poder da inovação aliada à vontade política, na verdade a capacidade do poder de compra das vacinas, isto é, o seu acesso, não foi igualitário em todo o mundo. Enquanto tínhamos uma esmagadora maioria da população dos países desenvolvidos vacinada, outra parcela da população dos países em desenvolvimento não se encontrava vacinada, pelo que era quase impossível erradicar o vírus a nível mundial tendo em conta estas disparidades. Quanto às desigualdades de género, constou-se que as mulheres e as crianças foram o grupo social que ficou mais exposto às vulnerabilidades da pandemia, assumindo mais responsabilidades domésticas e de cuidado, e enfrentando o aumento da violência doméstica em virtude do confinamento. Efetivamente, as ondas sucessivas de novas variantes da Covid-19 e os alertas de que futuras pandemias serão cada vez mais prováveis de ocorrer, ajudaram a compor uma atmosfera generalizada de incerteza de 6 em cada 7 pessoas quanto ao seu futuro, independentemente do seu estatuto socioeconómico ou do país onde vivem, afetando negativamente a sua saúde mental.
Evidentemente, já enfrentámos doenças, guerras e disrupções ambientais no passado, mas a confluência das desestabilizadoras pressões planetárias com o crescimento das desigualdades de desenvolvimento humano, as profundas transformações sociais para aliviar essas pressões e a polarização generalizada apresentam fontes novas, complexas e interativas de incerteza para o Mundo e para todos os que o habitam, pelo que este é o novo normal na vida de qualquer sociedade ao nível mundial. Deste modo, compreender e dar resposta a estes desafios com os quais a Humanidade se depara, e fornecer aos indivíduos as ferramentas necessárias para se sentirem mais seguros, recuperarem o controlo sobre as suas vidas e terem esperança no futuro, são os objetivos do Relatório de Desenvolvimento Humano de 2021/2022, como enfatiza Pedro Conceição, diretor do gabinete responsável pelo Relatório de Desenvolvimento Humano no Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e redator principal do mesmo: “O Relatório do Desenvolvimento Humano de 2021/2022 não só agrega como também estende estas discussões assumindo como tema a incerteza – como está a mudar, o que significa para o desenvolvimento humano e como podemos prosperar face a esta realidade”.
Deste modo, o relatório destaca que há oportunidades na incerteza. Nestes últimos três anos, mostrámos a nossa capacidade em lidar e superar adversidades, que somos capazes de ir “além” das formas convencionais de tratar dos assuntos, transformando as nossas instituições de modo a que sejam mais adequadas ao Mundo atual. Tal como proferiu Achim Steiner, administrador do PNUD, é necessário haver um senso renovado de solidariedade global para enfrentar “desafios comuns e interconectados”, mas para tal a comunidade internacional tem de se unir, pois tem mais a ganhar se “coinvestirmos” uns nos outros, em vez de tentarmos competir uns com os outros. Por outras palavras, todos os países (desenvolvidos e em desenvolvimento) devem concentrar-se em maneiras de promover o desenvolvimento humano, que não se foquem exclusivamente em melhorar a riqueza ou a saúde dos indivíduos. Assim, se a comunidade internacional fizer as escolhas certas para moldar os caminhos de desenvolvimento do século XXI de que precisa para garantir o seu futuro e do planeta, pode traçar um novo rumo a partir da atual incerteza global.
Para finalizar, o relatório argumenta que as políticas de próxima geração que permitirão que os indivíduos prosperem diante da incerteza concentram-se no investimento, seguro e inovação. Relativamente ao investimento, este é imprescindível nos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, visando reduzir a pobreza e a desigualdade, promover a igualdade de género, impulsionar a ação climática e a restauração do Mundo natural. Quanto ao seguro e à proteção social, são vitais para prepararem os países e as comunidades para a próxima crise, pois são um meio vital para ajudar algumas das comunidades mais pobres e vulneráveis do Mundo a se adaptarem às mudanças climáticas como, por exemplo, no Chifre de África. A par dos relatórios quer da parceria OIT-UNICEF, quer da World Childwood Foundation, ambos sublinham a necessidade urgente em haver um compromisso por parte das respetivas entidades nacionais com as suas crianças pois, afinal, a construção de proteção social para estas recai sobre si, sendo uma base vital para ajudá-las a sair de um Mundo vulnerável em que estão inseridas, permitindo-lhes ter acesso à educação, à saúde, ao saneamento básico, a uma habitação digna, à nutrição e a estabilidade psicológica, pondo fim a práticas desumanas como a violência sexual, o casamento infantil e o trabalho infantil. Assim, a proteção social deve ser compreendida como uma realidade imprescindível no Mundo atual, uma vez que está consagrada como um direito humano universal, consistindo numa pré-condição para um Mundo livre da pobreza. No que toca à inovação nas suas diversas formas (tecnológica, económica e cultural), é importante porque ajudará a definir a resposta da comunidade internacional aos desafios de desenvolvimento humano de hoje e de amanhã.
Em suma, o Relatório sobre o Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) sublinha que não existem inevitabilidades junto da comunidade internacional, apenas duras incógnitas quanto ao futuro por parte da comunidade internacional. Efetivamente, a incerteza não é algo de novo, pois há muito que a Humanidade encara com preocupação os desafios que surgem no Mundo, pelo que se pode afirmar que há perigo nas incertezas, mas também que há oportunidade nelas em reimaginar o nosso futuro, renovar e adaptar as instituições e criar novas histórias sobre quem é a Humanidade e o que valoriza. Na verdade, a melhor resposta a ser dada é uma aposta reforçada no desenvolvimento humano, no qual se evidenciam as capacidades criativas e cooperativas que integram a essência da própria Humanidade, sendo este o caminho esperançoso a seguir caso esta queira prosperar num Mundo em mudança, pelo que “este é um trabalho de todos e para benefício de todos”, como salientou o secretário-geral das Nações Unidas António Guterres.
Referências Bibliográficas
CONCEIÇÃO, Pedro (2022), Uncertain Times, Unsettled Lives: Shaping our Future in a Transforming World, United Nations Development Programme Report 2021/2022, New York, USA.
ENGSTRÖM ALEXANDER, Petra (2021), World Childwood Foundation Activity Report 2021, Stockholm, Sweden.
ILO and UNICEF (2023), More than a billion reasons: The urgent need to build universal social protection for children. Second ILO–UNICEF Joint Report on Social Protection for Children, Geneva and New York.
WORLD CHILDWOOD FOUNDATION (2023), Childwood in Ukraine. One year after the invasion, Stockholm, Sweden.