Recensão por: Beja Santos.

desigualdades em portugal_imagem

Carmo, Renato Miguel do (coord.) (2011), Desigualdades em Portugal: Problemas e Propostas, Edições 70, Lisboa.

Este livro é uma colectânea de artigos que oferece uma aproximação multidimensional às desigualdades sociais em Portugal. 

Um conjunto de artigos que foram inicialmente publicados no jornal Le Monde Diplomatique (edição portuguesa) nos anos mais recentes transformam-se num livro que permite ao leitor alicerçar a ideia de que as desigualdades interferem num conjunto de dimensões sociais, económicas e políticas. Num tempo em que tanto se discute quais os melhores rumos para que a economia se torne sustentável e em que os fazedores de opinião tanto nos massacram com o défice orçamental, o défice público, o endividamento ou a competitividade, é altura também de assestar as baterias sobre as desigualdades: Desigualdades em Portugal, Problemas e Propostas, coordenação de Renato Miguel do Carmo, Edições 70, Dezembro de 2011[i].
Portugal é um dos países mais assimétricos da Europa se bem que, importa reconhecê-lo, entre 2006 a 2009 se tenha verificado uma atenuação gradual das desigualdades de rendimento. A persistência e a intensificação das desigualdades devem-se a um conjunto de fatores onde avultam o aumento do desemprego, a situação de desemprego de longa duração, e daí podemos falar em interferências da mais diferente índole. A mensagem principal é de que a sociedade portuguesa funcionaria muito melhor se os níveis de desigualdade entre nós não fossem tão elevados. Mas também não podemos ser ingénuos, estamos na presença de uma sociedade europeia onde é patente o aumento real da polarização social entre os que têm muito e aqueles que continuam a ter pouco e em que a política económica teima em ser austera sobretudo com estes últimos, como observa o coordenador da obra.
Damos todos os sinais de ser uma democracia dual, temos aliás uma longa tradição de dualidade acentuada nos anos 60, quando se adotou o modelo de industrialização acelerada. Na prática, são os grupos de mais alto rendimento que usufruem dos predicados da participação: são eles os membros dos partidos políticos, os que encabeçam os movimentos de protesto, os que lideram as estruturas empresariais, que estão à frente dos clubes e os escolhidos autárquicos. É curioso ver como os comentadores televisivos, os especialistas que debitam permanentemente opiniões nos órgãos de comunicação social, que comparecem às conferências provêm das classes mais favorecidas, muitos deles gozam de notoriedade nas suas profissões liberais ou dispõem de empregos públicos, fixos e garantidos; é limitadíssimo o número daqueles que têm participam na construção de opinião e que têm empregos precários, remunerações baixas, direitos laborais reduzidos ou dispõem de limitado acesso à proteção social.
Quando falamos de desigualdades, importa ter em conta que a questão recobre uma multiplicidade de processo e dimensões das relações sociais, como se refere no livro: desigualdades económicas, desigualdades de classe, género e etnia, desigualdades nos acessos à saúde, educação e cultura e também desigualdades políticas e de participação social. Como é observado no texto, Portugal é o país com a terceira mais baixa frequência de práticas de ação coletiva. Apesar das conquistas democráticas alcançadas com a revolução de 1974, a sociedade portuguesa revela-se como uma das menos dinâmicas a nível europeu no que se refere à consolidação de práticas democráticas e de cidadania. Esta posição recuada é complementada pela persistência de características estruturantes da organização económica, social e institucional profundamente inibidoras de uma cidadania participativa.
A desigualdade de género é um outro tema abordado, tal como a baixa produtividade e o problema da relação salarial na criação de riqueza e a sua repartição. António Dornelas reflete sobre a regulamentação do mercado de trabalho observando que existem em Portugal as condições que permitem responder com soluções negociadas aos principais problemas sociais dos nossos dias: o aumento do desemprego, a insegurança do emprego e o alto nível de desigualdades sociais. Falando da escola e das suas desigualdades, Hugo Mendes recorda que podemos repartir as desigualdades escolares em quatro: as relativas aos recursos económicos, sociais e culturais das famílias; as relativas à ecologia local da escola e da residência do aluno; as relativas à escola como um espaço que concentra recursos materiais e humanos de qualidade desigual; e as relativas às práticas pedagógicas (algumas não permitem a recuperação dos alunos com dificuldades). Mais adiante, o autor observa que a retenção (permanência do aluno no sistema mesmo que reprove) não serve nenhum dos objetivos de um sistema moderno e recorda que um sistema que estimula mais cedo o desenvolvimento cognitivo reduz a necessidade de se recorrer a medidas compensatórias ao longo da escolaridade.
Também a endocrinologista Isabel do Carmo nos alerta para o facto de quando o rendimento desce a obesidade cresce, as pessoas em situação económica difícil sentem-se atraídas por preparações com gordura ou com gordura e açúcar, e predica: “Com o aprofundamento da crise em Portugal podem colocar-se duas hipóteses. Num primeiro tempo a obesidade vai aumentar, com maior incidência nos mais pobres. As mulheres desempregadas apresentarão mais obesidade, embora o mesmo não se verifique com os homens desempregados. Está demonstrado que os horários de trabalho desregulados e a privação de sono aumentam o apetite, o que também concorrerá para a obesidade” (p. 103).
Na perceção dos riscos também é possível detetar por onde passam as desigualdades sociais. Os que possuem melhores classes de rendimento dão prioridade ao tratamento dos novos riscos (será o caso da co-incineração, das pandemias anunciadas, das possíveis contaminações com urânio) enquanto os que menos possuem continuam arreigados aos riscos crónicos.

Enfim, os fenómenos preponderantes que continuam a produzir mecanismos de desigualdade dão pelo nome de: debilidade do nosso tecido económico e empresarial; baixo nível de rendimento auferido por pate substancial da população e défice de escolarização e de qualificação profissional. E o coordenador deixa-nos uma última advertência: “É preciso encarar a predisposição de e para a mudança com a responsabilidade de vida para conseguir transformar os fatores que teimam em persistir (como é o caso das desigualdades sociais). Se assim não fizermos, corremos o risco de cair na vertigem da mudança com a ilusão utópica de querermos comandá-la e manipulá-la” (p.127).

Beja Santos

[i] Esta recensão foi originariamente publicada no site Vidas Alternativas. O autor da recensão e  o responsável pelo site Vidas Alternativas  autorizaram gentilmente que a recensão fosse publicada no site do Observatório das Desigualdades.

Originalmente publicado no Observatório das Desigualdades, 2012