Carmo, Renato Miguel do (org.) (2013), Portugal uma Sociedade de Classes: Polarização Social e Vulnerabilidade, Lisboa, Edições 70/Monde Diplomátique
Esta obra promove um olhar sobre os processos de recomposição social da sociedade portuguesa, nas suas continuidades e mudanças, tendo a problemática das classes sociais e das desigualdades como pano de fundo.
Sobre várias perspetivas, Portugal, uma sociedade de classes, convoca-nos para um debate imprescindível. Durante muito tempo, principalmente a partir dos anos 90, o debate em torno das classes sociais quase desapareceu do debate sociológico. Apesar do enorme arsenal teórico sobre as classes sociais que Renato Miguel do Carmo procura mapear, a partir dos anos 90 desenvolveu-se uma hegemonia intelectual que prematuramente anunciou, de forma mais ou menos direta, a perca de relevância das classes sociais como objetos particularmente importantes para pensar a sociedade contemporânea.
A pertinência deste livro começa nesse postulado: é que a crise financeira de 2008 e os processos sociais e económicos que desde essa altura temos vivido mostram que as classes sociais não só não desapareceram, como se têm polarizado. É certo que a modernização e a terciarização da economia transformaram de forma determinante a sociedade portuguesa. Contudo, como Rosário Mauritti e Nuno Nunes advertem, a estrutura social portuguesa é ainda bastante carenciada de qualificações, igualmente visível na distribuição das classes sociais em Portugal. Seria talvez por isso importante perceber em que medida a crise de 2008 transformou os percursos de continuidade e mudança na recomposição social portuguesa de que fala Rosário Mauritti e Nuno Nunes. Por ouro lado, seria interessante explorar com mais detalhe o efeito geracional que Vasco Ramos começa por desconstruir.
De facto, como argumenta Vasco Ramos, defender que existe hoje uma geração jovem com menos direitos e qualidade de vida que a geração anterior esconde, por um lado, que quer na geração mais velha, quer na geração mais nova, existem indivíduos e grupos com condições de vida e de trabalho muito diversificadas, e esconde, por outro lado, que as situações de precariedade laboral e estabilidade na vida já afetam tanto as gerações mais jovens como as mais velhas. Contudo, parece-me que a autoidentificação de uma “geração à rasca” pode resultar de uma mudança profunda nas expectativas sobre as instituições. Esperava-se que o mercado, o estado e a economia proporcionassem as condições de mobilidade social que permitissem aos jovens concretizarem as suas expetativas de vida e de trabalho. A verdade é que há hoje uma parte muito considerável da geração jovem que se confronta com um desemprego muito elevado, com níveis de precariedade crescentes e que viverá pior que a geração dos seus pais. Talvez por isso fosse interessante explorar a hipótese de que a mudança de expetativas sobre as instituições tem alimentado um sentimento de pertença geracional muito acentuado.
Num capítulo importante sobre a relação entre as classes sociais e a cidadania política, Tiago Carvalho argumenta que os atuais protestos contra a política seguida não representam um aumento da confiança ou da participação política mas refletem sim uma distância à política. Não duvidamos, seguido a linha de argumento, que a um posicionamento de classe desfavorecido corresponde tendencialmente um aumento do distanciamento em relação aos centros de decisão e poder. Mas seria talvez interessante explicar a outra dimensão do fenómeno. É que à medida que estes novos movimentos formulam uma crítica muito acérrima ao sistema político encontram também, em si mesmo, diversas formas de participação política e de organização coletiva. Não me parece pois que se verifique um distanciamento em relação à política, mas um afastamento em relação à política institucional e aos centros legitimados de poder.
Mas se a crise de 2008 nos convoca para um debate fundamental, em Portugal continuam a ser visíveis indicadores de desigualdade que vêm de muito antes dessa data. Portugal contínua a ser uma sociedade marcada por uma assimetria na distribuição de rendimentos que, como Margarida Carvalho refere, se têm traduzido numa polarização cada vez maior entre as remunerações de trabalhadores. Essas transformações têm levado a uma compressão dos grupos de ganho intermédio, ou como Frederico Cantante argumenta, numa magreza considerável das classes médias. Fenómenos complexos, numa sociedade que, como Pedro Abrantes demonstra, apesar de historicamente atrasada em relação à Europa, continua a lutar pela valorização dos seus trabalhadores à luz das suas experiências e conhecimentos de vida.
Identifica-se, assim, uma polarização social, numa sociedade cuja desigualdade no trabalho tem profundas marcas societais de que é exemplo paradigmático o caso de Mariana Bonfim, trazido a debate por Inês Brasão e que faz parte de um arrebatador estudo sobre a condição servil das trabalhadoras domésticas no século XX. Por outro lado, novos desafios ao debate sociológico e ao futuro da política marcam a sociedade contemporânea. Seguimos a pista de encerramento de Renato Miguel do Carmo: num tempo de transformações aceleradas, o processo de precarização do trabalho constitui um dos fenómenos mais importantes para pensar o trabalho, as classes sociais e as desigualdades. Em torno desse processo correrá muita tinta, mas também muita incerteza, muitos dramas e muitas vidas. A haver sociologia, ela terá que percorrer também esses caminhos.
De facto, como argumenta Vasco Ramos, defender que existe hoje uma geração jovem com menos direitos e qualidade de vida que a geração anterior esconde, por um lado, que quer na geração mais velha, quer na geração mais nova, existem indivíduos e grupos com condições de vida e de trabalho muito diversificadas, e esconde, por outro lado, que as situações de precariedade laboral e estabilidade na vida já afetam tanto as gerações mais jovens como as mais velhas. Contudo, parece-me que a autoidentificação de uma “geração à rasca” pode resultar de uma mudança profunda nas expectativas sobre as instituições. Esperava-se que o mercado, o estado e a economia proporcionassem as condições de mobilidade social que permitissem aos jovens concretizarem as suas expetativas de vida e de trabalho. A verdade é que há hoje uma parte muito considerável da geração jovem que se confronta com um desemprego muito elevado, com níveis de precariedade crescentes e que viverá pior que a geração dos seus pais. Talvez por isso fosse interessante explorar a hipótese de que a mudança de expetativas sobre as instituições tem alimentado um sentimento de pertença geracional muito acentuado.
Num capítulo importante sobre a relação entre as classes sociais e a cidadania política, Tiago Carvalho argumenta que os atuais protestos contra a política seguida não representam um aumento da confiança ou da participação política mas refletem sim uma distância à política. Não duvidamos, seguido a linha de argumento, que a um posicionamento de classe desfavorecido corresponde tendencialmente um aumento do distanciamento em relação aos centros de decisão e poder. Mas seria talvez interessante explicar a outra dimensão do fenómeno. É que à medida que estes novos movimentos formulam uma crítica muito acérrima ao sistema político encontram também, em si mesmo, diversas formas de participação política e de organização coletiva. Não me parece pois que se verifique um distanciamento em relação à política, mas um afastamento em relação à política institucional e aos centros legitimados de poder.
Mas se a crise de 2008 nos convoca para um debate fundamental, em Portugal continuam a ser visíveis indicadores de desigualdade que vêm de muito antes dessa data. Portugal contínua a ser uma sociedade marcada por uma assimetria na distribuição de rendimentos que, como Margarida Carvalho refere, se têm traduzido numa polarização cada vez maior entre as remunerações de trabalhadores. Essas transformações têm levado a uma compressão dos grupos de ganho intermédio, ou como Frederico Cantante argumenta, numa magreza considerável das classes médias. Fenómenos complexos, numa sociedade que, como Pedro Abrantes demonstra, apesar de historicamente atrasada em relação à Europa, continua a lutar pela valorização dos seus trabalhadores à luz das suas experiências e conhecimentos de vida.
Identifica-se, assim, uma polarização social, numa sociedade cuja desigualdade no trabalho tem profundas marcas societais de que é exemplo paradigmático o caso de Mariana Bonfim, trazido a debate por Inês Brasão e que faz parte de um arrebatador estudo sobre a condição servil das trabalhadoras domésticas no século XX. Por outro lado, novos desafios ao debate sociológico e ao futuro da política marcam a sociedade contemporânea. Seguimos a pista de encerramento de Renato Miguel do Carmo: num tempo de transformações aceleradas, o processo de precarização do trabalho constitui um dos fenómenos mais importantes para pensar o trabalho, as classes sociais e as desigualdades. Em torno desse processo correrá muita tinta, mas também muita incerteza, muitos dramas e muitas vidas. A haver sociologia, ela terá que percorrer também esses caminhos.
Originalmente publicado em: Observatório das Desigualdades, 2013