Recensão por: Sérgio de Andrade
Um novo estudo realizado por Ana Gomes (Academia da Força Aérea Portuguesa) e José G. Dias (BRU, ISCTE-IUL) revela que, apesar do aumento do acesso à internet na União Europeia (diminuição das desigualdades digitais de primeiro nível), continua a existir um fosso digital profundo quando se olha para frequência e tipos de uso da internet e literacia digital (desigualdades digitais de segundo nível), quer dentro de cada Estado-Nação, quer entre estes.
Em 2010 foi criada, pela Comissão Europeia, a Estratégia Europa 2020 e a Agenda Digital para a Europa 2010-2020 (e, mais tarde, 2020-2030), que tinham como objetivo garantir a adoção da internet por todos os cidadãos da UE através da facilitação de ações que apoiam a sua acessibilidade e a literacia digital. Estas medidas não foram concretizadas na sua maioria até hoje, havendo não só uma diferença geográfica no acesso à internet (Internet World Stats, 2021), como também desigualdade socioeconómica, a qual, por sua vez, é correlacionada com a literacia financeira da população e o tipo de uso que esta faz da internet. Com isto em mente, o artigo sugere que as diferenças geográficas, existentes mesmo tendo em conta diversidades socioeconómicas dentro dos próprios territórios, são prova de que o uso da internet é um fenómeno social, sendo este influenciado por fatores contextuais (normas culturais, infraestrutura social, etc…) e redes sociais em que os indivíduos estão inseridos, as quais podem ser facilitadoras (familiares ou amigos que usam a internet regularmente promovem o seu uso ao indivíduo) ou barreiras (as pessoas à volta do indivíduo não utilizam a internet, logo, não existe a normalização social que existe para os indivíduos cujas redes sociais integraram totalmente o uso da internet no seu quotidiano). Também é de destacar a influência que a confiança que os indivíduos possuem nas suas interações online, ou seja, a (ciber)segurança percebida pelos indivíduos no território tem influência no seu uso da internet, havendo correlação direta entre esta e a vontade que os indivíduos possuem de fazer uma utilização mais “avançada” da internet.
É pertinente deixar uma nota metodológica sobre como foi realizado o estudo. Os autores recorreram aos dados recolhidos pelo Eurobarómetro 87.4 (2017) da Comissão Europeia, que tinha como um dos objetivos perceber quais as atitudes dos cidadãos europeus face ao uso da internet, recolhendo dados de cidadãos dos (na altura) 28 estados-membro, selecionados para entrevistas cara-a-cara (gravadas) através de uma amostragem probabilística (aleatória) multietápica. Ou seja, primeiro foram selecionados diferentes países da UE, depois procedeu-se à seleção das regiões dos diferentes países e, por último, selecionou-se os indivíduos dentro dessas regiões a serem entrevistados. A amostra a partir da qual se recolheu informação foi de 27.812 pessoas, levando a uma margem de erro baixa (<1% com um intervalo de confiança de 95%). Também é de mencionar o uso de ponderadores associados às variáveis explicativas (ex: nacionalidade, nível de educação, etc.), de modo a garantir que os resultados são representativos da população europeia, evitando a sobre/sub-representação de certos grupos e permitindo inferências mais precisas. Mais informações quanto a este Eurobarómetro podem ser encontradas aqui.
O estudo refere quais são as características e recursos individuais que levam a um menor uso da internet: os rendimentos auferidos, a educação formal e o género estão entre os mais importantes. Para verificar de que forma estes aspetos estão relacionados com os tipos de uso de internet, os autores aplicam técnicas estatísticas de clustering para criar uma tipologia que consiste em seis perfis de utilizadores:
- Não-Utilizadores (Non-Users), grupo 1, os quais representam 21% da amostra estudada e não possuem acesso à internet, sendo predominantes nos países empobrecidos do sul da Europa (Portugal, Roménia, etc…) cuja população apresenta uma menor taxa de conclusão de ensino superior, menor poder de compra e maiores índices de envelhecimento. É de notar que, nos países mais tecnologicamente desenvolvidos, o fosso entre as pessoas mais empobrecidas características do grupo 1 e as mais afluentes do grupo 6 não é tão grande, havendo mais pessoas com menos anos de ensino (por exemplo) no grupo 6. Este é o grupo com maior percentagem de desempregados e indivíduos não economicamente ativos (87%) e o grupo com mais pessoas viúvas (26,4%);
- Utilizadores Básicos (Basic Users), grupo 2, o menor cluster (representa 7,9% da amostra), são indivíduos que acedem à internet duas a três vezes por semana, não a usam no trabalho e acedem a esta exclusivamente pelos computadores e telemóveis e maioritariamente para ler e-mails e ver notícias. Este grupo costuma ter o 3º ciclo ou ensino secundário (52,9%) e a coorte etária dominante localiza-se entre os 45 e os 54 anos, sendo mais prevalente na Itália (16,3%) e Polónia (13,1%);
- “Trocadores de Informação” (Information Exchangers), grupo 3, tem uma maior presença de usuários diários em casa, mas raramente utilizam a internet no trabalho. Quase todos acedem à internet pelo computador. Receber e-mails e ver notícias são as atividades preferidas. 85,5% das pessoas neste grupo têm mais de 45 anos e a maioria concluiu o 3º ciclo ou ensino superior (50,8%). Destaca-se a Letónia, República Checa, França, Alemanha e Itália entre os países com mais indivíduos neste perfil;
- Usuários Utilitários (Instrumental Users), grupo 4, são indivíduos que utilizam a internet diariamente em casa e no trabalho, usando o computador ou telemóvel para fazer tarefas como ver e-mails, online banking e compras. A faixa etária é semelhante à do grupo 3 (>45 anos), contudo, 42,9% possui ensino superior. Utilizadores da Áustria, Bélgica, Alemanha, França e Luxemburgo apresentam uma grande probabilidade de estarem incluídos neste grupo;
- Socializadores/Criadores de Conteúdo (Socializers/Entertainers), o grupo 5, são indivíduos que acedem à internet diariamente em casa e no trabalho, primariamente através do telemóvel e passam a maior parte do tempo nas redes sociais. É o grupo mais jovem (42,5% deles têm entre os 15 e os 24 anos) e apresentam a maior taxa de estudantes (34,4%). São maioritariamente dos países do Sul, Balcãs e Irlanda do Norte.
- Os Utilizadores Avançados (Advanced Users), grupo 6, são os que mais usam a internet em casa e no trabalho, sendo ainda os que mais usam dispositivos móveis (smartphones e tablets) e os que interagem com mais atividades online, especialmente usar o e-mail e sites de compras. São indivíduos maioritariamente entre os 25 e os 44 anos (53,0%) e com ensino superior (53,7%), sendo também o grupo no qual mais pessoas residem em grandes cidades (30,8%). Este grupo é mais representado nos países do Norte, nomeadamente a Suécia, os Países Baixos e a Dinamarca.
O estudo das estatísticas relativas a estes grupos é importante, pois denota um fosso digital evidente entre os países do Norte (que têm mais utilizadores do grupo 6, os quais costumam ter mais capital económico e cultural) e os países do Sul (que têm mais utilizadores do grupo 1, os quais costumam ser mais empobrecidos e apresentam desvantagens socioeconómicas e educacionais). Também existe o fator importante das diferenças sociodemográficas entre o grupo 1 e o grupo 6 serem reduzidas nos países mais desenvolvidos do Norte (como a Suécia), provando não só que existe um fosso digital entre os países, como também dentro dos próprios países esse fosso tem um impacto menor quão mais economicamente desenvolvida for a Nação. Interessa ainda observar como as desigualdades socioeconómicas alimentam o fosso digital, que a UE tenta, sem sucesso, eliminar há anos e que gera não só uma pior integração social (especialmente pós-COVID) dos utilizadores básicos e não-utilizadores, como também uma forte desigualdade de oportunidades que afeta uma população já vulnerável (especialmente quando se fala dos não-utilizadores).
Os autores concluem que a solução para haver uma efetiva “transformação digital” na Europa que seja inclusiva e equitativa, corrigindo as desigualdades digitais, é a criação de medidas de política pública dedicadas aos grupos de utilizadores mais vulneráveis (especialmente os grupos 1 e 2), bem como para resolver as disparidades regionais europeias. Tal deve passar pelo aumento do investimento na educação formal (fator correlacionado com o uso mais frequente da internet), uma melhor redistribuição da riqueza (pois o rendimento auferido afeta diretamente o uso da internet) e o estudo constante dos fossos existentes na tecnologia digital, de modo a diagnosticá-los e combatê-los.