Recensão por: Sofia Santos.
Soja, Edward W. (2010), Seeking Spatial Justice, University of Minnesota Press, Minneapolis.
A publicação contribui para a compreensão da introdução de noções como justiça espacial e direito à cidade no pensamento e planeamento do espaço e para uma maior atenção ao carácter espacial das dinâmicas de desigualdade.
Seeking Spatial Justice sugere, logo no título, dois aspectos fundamentais do livro: aqui se apresenta e desenvolve uma concepção espacial de justiça e pretende-se que esta constitua um princípio normativo na formulação de políticas. Fazendo referência ao seu percurso enquanto geógrafo e urbanista e ao da escola onde tem leccionado (UCLA), Soja distingue a cidade como a grande arena da procura pela justiça espacial, concretizando no exemplo de Los Angeles.O livro divide-se em seis capítulos e procura sintetizar vários campos de debate académico e das políticas urbanas que se têm organizado em torno de noções como justiça territorial, territórios injustos ou direito à cidade, entre outros termos utilizados para problematizar justiça e desigualdades sociais na sua relação com o espaço. Começa por desmontar a noção e apresentar os motivos de se referir a justiça, de esta ser considerada na sua concepção espacial e ainda o que o leva a pensar que seja particularmente pertinente discuti-la agora e em Los Angeles.O segundo capítulo apresenta as várias escalas a que são produzidas geografias injustas. Esta perspectiva multi-escalar articula-se em três níveis: exógeno; endógeno; mesogeográfico ou regional. No terceiro capítulo, a construção de uma teoria espacial de justiça explicita uma perspectiva espacial crítica que recorre aos contributos de autores como Rawls, Young, Harvey, Lefebvre e Foucault, entre outros.
O capítulo seguinte concentra-se na cidade de Los Angeles enquanto palco maior das crescentes desigualdades de rendimentos e de polarização social que os EUA vêm produzindo, mas também da reacção activa de organizações comunitárias e profissionais cuja palavra de ordem é justiça. Para Soja é claro que se tratava também de justiça espacial.
Alem destes aspectos, outro distingue o caso de Los Angeles: a cultura do departamento de planeamento urbano na UCLA (University of California – Los Angeles) de relação muito próxima com as organizações comunitárias, com uma componente forte de investigação-acção. No quinto capítulo, Soja descreve a produção e envolvimento deste departamento no estudo e activismo sobre justiça espacial. Por último, remata fazendo referência à particularidade do contexto económico e político após o 11 de Setembro sobretudo as suas repercussões nos movimentos de justiça espacial em Los Angeles.
Soja afirma que tem persistido uma assimetria entre a explicação social e espacial, com prejuízo da segunda, que se deve a uma precaução disciplinar de longa data de evitar conferir demasiado poder causal à espacialidade na vida social, receio de cair em perspectivas deterministas que já contaminaram a geografia no passado. Argumenta a imbricação do espaço na teoria social numa perspectiva que assuma a dialéctica sócio-espacial: a espacialidade modela as relações sociais tal como os processos sociais configuram e dão significado às geografias humanas (p. 4). Repare-se que, para o autor, a noção de justiça espacial é indissociável desta imbricação entre dinâmicas sociais e espaciais. Terá sido determinante para o desenvolvimento e divulgação destes debates, o denominado spatial turn dos anos mais recentes que, considera o autor, deve muito aos geógrafos humanos da corrente crítica/ radical.
Soja procura relatar as várias aplicações da noção de justiça espacial, mesmo que não utilizando esta denominação, na contemporaneidade. Vai destacando as publicações e os eventos mais marcantes que se debruçaram sobre justiça espacial. O trabalho de Susan Fainstein e Peter Marcuse são indicados mas não sem alguma crítica, considerando que raramente adoptam uma perspectiva espacial crítica.
Na análise da produção multi-escalar de territórios injustos, a estratégia do livro passa por enunciar contextos espaciais específicos e estudos de vários autores. Sobre as geografias exógenas e a organização política do espaço, refere os banlieues de Paris, os estudos sobre geografias coloniais e pós-coloniais (destacando o trabalho de Edward Said), a estratégia degerrymandering – isto é, a configuração dos círculos eleitorais usada para favorecer determinados interesses, o apartheid sul-africano ou a ocupação da Palestina. Destaca também a tendência crescente para um urbanismo obcecado pela segurança e a relação conflitual entre espaço público e propriedade privada que pode reportar tanto a debates sobre os recursos naturais e a sustentabilidade ambiental global como sobre a luta pelos direitos humanos universais em contexto urbano.
A produção endógena de geografias de discriminação espacial diz respeito à desigualdade de distribuição de serviços e equipamentos de saúde, educação, de segurança, habitação etc., a que se associa a construção social de estruturas de vantagens e privilégios espaciais com diferenciais de riqueza e poder. No contexto americano, o racismo é fortemente debatido. Um dos movimentos mais activos denuncia o que chama de environmental racism (racismo ambiental, traduzido à letra), a forma como os pobres e as minorias, e em especial a população negra, estão mais exposta aos riscos ambientais.
As mesogeografias de desenvolvimento desigual reportam à escala supra-nacional: à divisão mais tradicional Norte/Sul; à globalização da injustiça/ injustiça da globalização; ao subdesenvolvimento e às teorias da dependência. São também mencionados os regionalismos (separatismos culturais existentes, por exemplo, em Espanha ou no Reino Unido) e o caso da União Europeia como ilustrativo da justiça espacial enquanto princípio normativo da formulação de políticas, exemplo discutível.
Após a enunciação destes exemplos e elaborando a sua teoria espacial de justiça, Soja recorre à noção de justiça social de John Rawls acrescentando-lhe o reconhecimento da diferença cultural a que apela Marion Young. Foucault e Giddens também compõem a base de referências teóricas, pelo papel estruturador que reconhecem ao espaço na construção da realidade social. O primeiro sobretudo por observar no espaço dinâmicas de opressão mas também oportunidades emancipatórias e o segundo pela sua concepção indissociável de espaço-tempo. O Maio de 1968 e o revivalismo da reinvindicação do direito à cidade nos anos 90 e 2000 são assinalados como épocas marcantes para o estudo e activismo social relacionados com as questões da justiça espacial.
Os dois pilares que Soja coloca em diálogo são, contudo, David Harvey e Henri Lebebvre. Soja concorda com Harvey na ênfase sobre o processo e não apenas nos resultados do que será um território mais justo: a justiça territorial (termo que Harvey utiliza) corresponderá a uma distribuição socialmente justa que é conseguida de modo justo. Harvey vem argumentando que o normal funcionamento do sistema urbano – desde os mercados de habitação, de trabalho e de solo às estratégias dos investidores, banqueiros, planeadores – tende para o agravamento das desigualdades. O diálogo com Lebfevre é, para Soja, indispensável uma vez que julga que os geógrafos marxistas, como Harvey, apesar de reconhecerem que as relações sociais de produção capitalista modelam o espaço, rejeitam que estas possam ser modeladas por processos e relações espaciais, tal como está implícito no termo justiça espacial e no modo como Lefebvre expõe o processo de produção social do espaço. Soja claramente distancia-se de Harvey por considerar que as dinâmicas espaciais – em particular o contexto urbano – têm capacidade geradora de desigualdades sociais não sendo apenas modeladas por estas, enquanto Harvey evita atribuir poder causal ao espaço, embora concorde com Soja na primazia que dá à análise da cidade. Outros estudos e a prática no ordenamento do território mostram, no entanto, como as injustiças espaciais não ocorrem apenas na cidade – por muito que o planeta esteja cada vez mais urbanizado.
Para Soja os conceitos de justiça espacial e de direito à cidade têm sido usados de forma tão interligada que se torna difícil separá-los. Considera o direito à cidade como um enquadramento que sintetiza os debates que antecederam a teoria espacial da justiça. Defender o direito à cidade é também, para Soja, mais que o direito a aceder ao espaço, o direito a transformá-lo no sentido da construção de uma cidade mais inclusiva. Sublinha os revivalismos contemporâneos que têm tornado a ideia do direito à cidade um tema de investigação, surgindo em literatura científica, encontros, conferências e também como conceito mobilizador para acção social e política. Em 2004 é publicado o World Charter for the Right to the City, no seguimento do Fórum Social das Américas (Quito) e do Fórum Urbano Mundial em Barcelona. São ainda referidos alguns autores da UCLA, fazendo-se a passagem para o contexto de Los Angeles.
Nesta cidade, o contexto socioeconómico e associativo, em proximidade com a escola de planeamento urbano, têm fornecido muito material para o estudo e activismo sobre justiça espacial. Fazendo uma síntese das tendências das últimas décadas de reestruturação económica – desindustrialização e reindustrialização, pósfordismo, o desenvolvimento das TIC, globalização – especifica que o seu enfoque é observar como o processo de reestruturação foi sendo construído com base numa tendência forte de desigualdade económica e polarização social crescentes. Apresenta-nos os EUA como um país de crescentes desigualdades realçando a urbanização desta polarização, sendo Nova Iorque e Los Angeles os grandes palcos geradores de desigualdade.
A publicação contribui para a compreensão da introdução de noções como justiça espacial e direito à cidade no pensamento e planeamento do espaço e para uma maior atenção ao carácter espacial das dinâmicas de desigualdade. O objectivo do autor passa não só pela reflexão mas sobretudo pelo estímulo à acção crítica sobre o território. Nas últimas páginas encontramos referências e sugestões de leitura e até de visionamento de filmes (documentários sobre movimentos de justiça em Los Angeles), precedidas por notas e agradecimentos. Conclui-se desta forma um bom manual de iniciação sobre perspectivas críticas de análise e acção sobre as desigualdades socio-espaciais urbanas.
Sofia Santos
O capítulo seguinte concentra-se na cidade de Los Angeles enquanto palco maior das crescentes desigualdades de rendimentos e de polarização social que os EUA vêm produzindo, mas também da reacção activa de organizações comunitárias e profissionais cuja palavra de ordem é justiça. Para Soja é claro que se tratava também de justiça espacial.
Alem destes aspectos, outro distingue o caso de Los Angeles: a cultura do departamento de planeamento urbano na UCLA (University of California – Los Angeles) de relação muito próxima com as organizações comunitárias, com uma componente forte de investigação-acção. No quinto capítulo, Soja descreve a produção e envolvimento deste departamento no estudo e activismo sobre justiça espacial. Por último, remata fazendo referência à particularidade do contexto económico e político após o 11 de Setembro sobretudo as suas repercussões nos movimentos de justiça espacial em Los Angeles.
Soja afirma que tem persistido uma assimetria entre a explicação social e espacial, com prejuízo da segunda, que se deve a uma precaução disciplinar de longa data de evitar conferir demasiado poder causal à espacialidade na vida social, receio de cair em perspectivas deterministas que já contaminaram a geografia no passado. Argumenta a imbricação do espaço na teoria social numa perspectiva que assuma a dialéctica sócio-espacial: a espacialidade modela as relações sociais tal como os processos sociais configuram e dão significado às geografias humanas (p. 4). Repare-se que, para o autor, a noção de justiça espacial é indissociável desta imbricação entre dinâmicas sociais e espaciais. Terá sido determinante para o desenvolvimento e divulgação destes debates, o denominado spatial turn dos anos mais recentes que, considera o autor, deve muito aos geógrafos humanos da corrente crítica/ radical.
Soja procura relatar as várias aplicações da noção de justiça espacial, mesmo que não utilizando esta denominação, na contemporaneidade. Vai destacando as publicações e os eventos mais marcantes que se debruçaram sobre justiça espacial. O trabalho de Susan Fainstein e Peter Marcuse são indicados mas não sem alguma crítica, considerando que raramente adoptam uma perspectiva espacial crítica.
Na análise da produção multi-escalar de territórios injustos, a estratégia do livro passa por enunciar contextos espaciais específicos e estudos de vários autores. Sobre as geografias exógenas e a organização política do espaço, refere os banlieues de Paris, os estudos sobre geografias coloniais e pós-coloniais (destacando o trabalho de Edward Said), a estratégia degerrymandering – isto é, a configuração dos círculos eleitorais usada para favorecer determinados interesses, o apartheid sul-africano ou a ocupação da Palestina. Destaca também a tendência crescente para um urbanismo obcecado pela segurança e a relação conflitual entre espaço público e propriedade privada que pode reportar tanto a debates sobre os recursos naturais e a sustentabilidade ambiental global como sobre a luta pelos direitos humanos universais em contexto urbano.
A produção endógena de geografias de discriminação espacial diz respeito à desigualdade de distribuição de serviços e equipamentos de saúde, educação, de segurança, habitação etc., a que se associa a construção social de estruturas de vantagens e privilégios espaciais com diferenciais de riqueza e poder. No contexto americano, o racismo é fortemente debatido. Um dos movimentos mais activos denuncia o que chama de environmental racism (racismo ambiental, traduzido à letra), a forma como os pobres e as minorias, e em especial a população negra, estão mais exposta aos riscos ambientais.
As mesogeografias de desenvolvimento desigual reportam à escala supra-nacional: à divisão mais tradicional Norte/Sul; à globalização da injustiça/ injustiça da globalização; ao subdesenvolvimento e às teorias da dependência. São também mencionados os regionalismos (separatismos culturais existentes, por exemplo, em Espanha ou no Reino Unido) e o caso da União Europeia como ilustrativo da justiça espacial enquanto princípio normativo da formulação de políticas, exemplo discutível.
Após a enunciação destes exemplos e elaborando a sua teoria espacial de justiça, Soja recorre à noção de justiça social de John Rawls acrescentando-lhe o reconhecimento da diferença cultural a que apela Marion Young. Foucault e Giddens também compõem a base de referências teóricas, pelo papel estruturador que reconhecem ao espaço na construção da realidade social. O primeiro sobretudo por observar no espaço dinâmicas de opressão mas também oportunidades emancipatórias e o segundo pela sua concepção indissociável de espaço-tempo. O Maio de 1968 e o revivalismo da reinvindicação do direito à cidade nos anos 90 e 2000 são assinalados como épocas marcantes para o estudo e activismo social relacionados com as questões da justiça espacial.
Os dois pilares que Soja coloca em diálogo são, contudo, David Harvey e Henri Lebebvre. Soja concorda com Harvey na ênfase sobre o processo e não apenas nos resultados do que será um território mais justo: a justiça territorial (termo que Harvey utiliza) corresponderá a uma distribuição socialmente justa que é conseguida de modo justo. Harvey vem argumentando que o normal funcionamento do sistema urbano – desde os mercados de habitação, de trabalho e de solo às estratégias dos investidores, banqueiros, planeadores – tende para o agravamento das desigualdades. O diálogo com Lebfevre é, para Soja, indispensável uma vez que julga que os geógrafos marxistas, como Harvey, apesar de reconhecerem que as relações sociais de produção capitalista modelam o espaço, rejeitam que estas possam ser modeladas por processos e relações espaciais, tal como está implícito no termo justiça espacial e no modo como Lefebvre expõe o processo de produção social do espaço. Soja claramente distancia-se de Harvey por considerar que as dinâmicas espaciais – em particular o contexto urbano – têm capacidade geradora de desigualdades sociais não sendo apenas modeladas por estas, enquanto Harvey evita atribuir poder causal ao espaço, embora concorde com Soja na primazia que dá à análise da cidade. Outros estudos e a prática no ordenamento do território mostram, no entanto, como as injustiças espaciais não ocorrem apenas na cidade – por muito que o planeta esteja cada vez mais urbanizado.
Para Soja os conceitos de justiça espacial e de direito à cidade têm sido usados de forma tão interligada que se torna difícil separá-los. Considera o direito à cidade como um enquadramento que sintetiza os debates que antecederam a teoria espacial da justiça. Defender o direito à cidade é também, para Soja, mais que o direito a aceder ao espaço, o direito a transformá-lo no sentido da construção de uma cidade mais inclusiva. Sublinha os revivalismos contemporâneos que têm tornado a ideia do direito à cidade um tema de investigação, surgindo em literatura científica, encontros, conferências e também como conceito mobilizador para acção social e política. Em 2004 é publicado o World Charter for the Right to the City, no seguimento do Fórum Social das Américas (Quito) e do Fórum Urbano Mundial em Barcelona. São ainda referidos alguns autores da UCLA, fazendo-se a passagem para o contexto de Los Angeles.
Nesta cidade, o contexto socioeconómico e associativo, em proximidade com a escola de planeamento urbano, têm fornecido muito material para o estudo e activismo sobre justiça espacial. Fazendo uma síntese das tendências das últimas décadas de reestruturação económica – desindustrialização e reindustrialização, pósfordismo, o desenvolvimento das TIC, globalização – especifica que o seu enfoque é observar como o processo de reestruturação foi sendo construído com base numa tendência forte de desigualdade económica e polarização social crescentes. Apresenta-nos os EUA como um país de crescentes desigualdades realçando a urbanização desta polarização, sendo Nova Iorque e Los Angeles os grandes palcos geradores de desigualdade.
A publicação contribui para a compreensão da introdução de noções como justiça espacial e direito à cidade no pensamento e planeamento do espaço e para uma maior atenção ao carácter espacial das dinâmicas de desigualdade. O objectivo do autor passa não só pela reflexão mas sobretudo pelo estímulo à acção crítica sobre o território. Nas últimas páginas encontramos referências e sugestões de leitura e até de visionamento de filmes (documentários sobre movimentos de justiça em Los Angeles), precedidas por notas e agradecimentos. Conclui-se desta forma um bom manual de iniciação sobre perspectivas críticas de análise e acção sobre as desigualdades socio-espaciais urbanas.
Sofia Santos