Novo inquérito do INE revela desigualdades étnico-raciais ao nível da educação, situação perante o emprego, habitação e experiência de discriminação. A população adulta que, em Portugal, se identifica como cigana ou negra sofre, respetivamente, cerca de 4 e 3 vezes mais discriminação do que a população que se autoidentifica como branca, ao mesmo tempo que apresenta proporções muito inferiores de escolarização ao nível do ensino superior (cerca de 26 vezes menos no caso da população que se identifica enquanto cigana e 2 vezes menos na que se identifica enquanto negra, comparativamente com a população branca), de acordo com o Inquérito às Condições de Vida, Origens e Trajetórias da População Residente (INE, 2023).

 

O ICOT, promovido pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) e desenvolvido no âmbito do Grupo de trabalho dos Censos 2021 sobre as Questões Étnico-Raciais, propôs-se a “conhecer a dimensão de cada um dos grupos étnicos com os quais a população residente em Portugal se identifica, e permitir a sua caracterização” (INE, 2023, p. 29). O inquérito foi aplicado junto de indivíduos dos 18 aos 74 anos de idade que residiam há pelo menos um ano em Portugal (ou cuja intenção de residência era de pelo menos um ano) em todo o território nacional, entre janeiro e agosto de 2023, a uma amostra de 21.608 pessoas. Os primeiros resultados foram disponibilizados ao público na última quinzena de 2023 e constituem os primeiros dados representativos de (auto)caracterização étnico-racial alguma vez recolhidos pelo Estado Português.

Em primeiro lugar, sobressai deste Inquérito uma realidade nacional heterogénea, no que toca às identificações étnico-raciais adotadas pelos indivíduos. As estimativas apontam para que 1,2 milhões de adultos residentes em Portugal não se autoidentifiquem como brancos (ou se identifiquem com outras etnicidades, além de branco), representando cerca de 16% da população. Destas, 262,3 mil pessoas referiram ter uma origem ou pertença mista, 169,2 mil autoidentificam-se como negras, 56,6 mil como asiáticas e 47,5 mil como ciganas.

De entre os indicadores de caracterização sociodemográfica dos vários grupos étnicos, destacamos as desigualdades verificadas ao nível do grau de escolaridade atingido (figura 1). Enquanto entre o grupo étnico maioritário (branco) 45,4% dos indivíduos afirmam ter completado, no máximo, até ao 3.º ciclo do ensino básico, esta figura ronda uns contrastantes 91,8% (+46,4 p.p.) para a população cigana e 49,7% (+4,3 p.p.) para a população negra; pelo contrário, os indivíduos autoidentificados como de origem mista e asiática apresentam mais frequentemente um nível de escolaridade secundário ou pós-secundário – respetivamente, 42,5% e 36,3% (+14,2 p.p. e + 8 p.p.), face a apenas 28,3% da população branca. No entanto, a “vantagem” educativa dos indivíduos de origem étnica mista não se verifica ao nível do ensino superior, visto que apenas 23,1% completaram este grau de ensino, face a 26,3% (-3,2 p.p.) entre os indivíduos autoidentificados como brancos, ao passo que os indivíduos de origem asiática superam os brancos na obtenção de um grau de ensino superior (30%, +3,7 p.p.). A desvantagem acentua-se dramaticamente entre a população de origem cigana, visto que o número de indivíduos ciganos com ensino secundário ou superior inquiridos pelo ICOT é de tal forma diminuto que não permite a realização de estimativas fiáveis para o universo populacional. Também a população negra apresenta menor proporção de indivíduos com ensino superior completo, face ao grupo étnico branco (15,6%, -10,7 p.p.).

Ao nível da condição perante o trabalho, verifica-se entre todas as populações não-brancas uma maior prevalência do desemprego (figura 2). Este é maior entre a população cigana (46,1%, +38,9 p.p. face à população maioritária), seguida da asiática (21,6%, +14,4 p.p.), da negra (17,9%, +10,7 p.p.) e de origens mistas (15,9%, +8,7 p.p.). Por outro lado, as pessoas de origem asiática são aquelas cuja proporção de inativos mais se assemelha à verificada entre a população autodenominada como branca (28,6%, -1,2 p.p.), ao passo que entre os indivíduos de origem cigana se verifica a proporção mais elevada de inativos (38,5%, +8,7 p.p.). No sentido inverso encontram-se as populações negras e de origem mista, com proporções de inatividade na casa dos 17,7% (-12,1 p.p.) e dos 16,2% (-13,6 p.p.).

 

Também ao nível da habitação se verificam desigualdades étnicas intensas (figuras 3 e 4). Todas as populações não-brancas apresentam proporções muito inferiores, face à população maioritária, de indivíduos adultos que sejam proprietários do seu alojamento. Esta proporção ronda os 45,6% para a população de origem mista (-29 p.p.), os 43,5% para a população de origem asiática (-31,3 p.p.), os 39% para a população de origem negra (-35,6 p.p.) e os 30,6% para a população de origem cigana (-44 p.p.).

No que toca às condições de vida, verificam-se desigualdades ao nível da internet no alojamento e à posse de automóvel próprio; damos aqui destaque ao nível de conforto térmico do alojamento. Enquanto 74% da população branca afirma sentir conforto térmico na sua habitação, esta proporção desce para 67,7% entre as pessoas de origem mista (-6,3 p.p.), para 65,3% entre as pessoas de origem asiática (-8,7 p.p.), para 56,4% entre as pessoas de origem negra (-17,6 p.p.) e, por fim, para 46,8% entre as pessoas de origem cigana (-27,2 p.p.).

Por fim, importa salientar que também a experiência de discriminação – definida no âmbito deste inquérito como “Qualquer distinção, exclusão, restrição, preferência ou tratamento desigual direta ou indiretamente manifestados por motivos proibidos e que anulam ou prejudicam o reconhecimento ou exercício, em pé de igualdade, de liberdades fundamentais e direitos humanos no campo político, económico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública” (INE, 2023, p. 30) – se revela expressivamente desigual entre indivíduos com diferentes pertenças étnicas (figura 5). Enquanto 13,9% das pessoas brancas afirmam ter sido discriminadas, essa proporção sobe para 24,1% entre a população asiática (+10,2 p.p.), para 40,4% entre a população de origens mistas (+26,5 p.p.), valor semelhante à população negra, em que 44,2% afirma já ter sido discriminado (+30,3 p.p.) e, por fim, para 51,3% entre a população cigana, onde metade refere já ter sido discriminada (+37,4 p.p.).

 

 

Em suma, os resultados deste inquérito parecem ir de encontro aos diagnósticos realizados por diversas organizações da sociedade civil portuguesa e por agências internacionais não-governamentais, que têm vindo a salientar a prevalência de níveis elevados de discriminação sistémica de base étnico-racial em vários setores da sociedade portuguesa, com destaque para a situação das populações ciganas e negras no domínio da habitação, justiça, emprego e educação (1) (2). O ICOT seguiu um conjunto de procedimentos metodológicos que salvaguardaram o direito dos inquiridos à autodeterminação na sua identificação étnica, dos quais dependia a validade da informação recolhida, já que as categorias étnicas não tinham sido ainda objeto de validação empírica. Este exercício permite refinar as categorias étnicas relevantes para a análise da sociedade portuguesa, numa lógica multidimensional, não correndo assim o risco de reduzir a multiplicidade de pertenças e de vetores de análise de relevo para a análise das desigualdades nas sociedades atuais. Desta breve notícia do que nos parecem ser os principais resultados no que respeita às desigualdades sociais, sobressai a necessidade de aprofundar a recolha de dados étnicos, sobretudo nos setores da educação, emprego e habitação – onde, aliás, se verificam a grande maioria das experiências de discriminação (INE, 2023, p. 26).

 

Referências:

Instituto Nacional de Estatística (2023), “Inquérito às Condições de Vida, Origens e Trajetórias da População Residente – Destaque, Informação à Comunicação Social, 23 de dezembro de 2023”, Lisboa, INE. Consultado a 02-01-2024. Disponível em https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_destaques&DESTAQUESdest_boui=625453018&DESTAQUESmodo=2.

(1) Lusa, “Plano de Combate ao Racismo teve apoio de grande maioria na consulta pública”, TSF, 11-08-2021. Consultado a 02-01-2024. Disponível em https://www.tsf.pt/portugal/sociedade/plano-de-combate-ao-racismo-teve-apoio-de-grande-maioria-na-consulta-publica-14023453.html.

(2) ECRI Secretariat (2018), ECRI Report on Portugal (fifth monitoring cycle), Strasbourg, Council of Europe. Consultado a 02-01-2024. Disponível em https://rm.coe.int/fifth-report-on-portugal/16808de7da.

 

19 de fevereiro de 2024. Elaborado por Adriana Albuquerque.

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