Recensão por: Fernando Pinto

 

Santos, Sofia (2019), As Pessoas e os seus Lugares. Mobilidades na Lisboa Metropolitana, Lisboa, Mundos Sociais.

 

O interesse crescente das mais variadas áreas disciplinares pelo tema das mobilidades ilustra bem a importância atual da circulação a diversos níveis, a ponto de se defender estarmos perante um novo paradigma dentro das ciências sociais. Mobilidade residencial, migrações internacionais e inter-regionais, turismo e deslocações pendulares, para usar uma categorização conhecida, são apenas algumas facetas de um mundo cada vez mais globalizado e em movimento.

Também para a Sociologia o estudo da mobilidade configura hoje um desafio da maior importância, na medida das complexas interdependências que se estabelecem entre mobilidades de populações, objetos, imagens e informações, assim como as consequências sociais dessas diversas mobilidades.

Neste livro, produto de uma investigação doutoral, Sofia Santos trata da mobilidade quotidiana na grande cidade-região de Lisboa, relacionando-a com as desigualdades sociais inscritas na configuração do território, nas oportunidades de escolha e nas narrativas dos atores sobre os lugares.

A estrutura da obra reflete essencialmente três frentes de pesquisa: 1) uma revisão bibliográfica sobre mobilidade espacial, desigualdades sociais, território e políticas públicas; 2) uma abordagem quantitativa ao território e às mobilidades geográficas, a partir de estatísticas oficiais e de um inquérito no âmbito do projeto Localways, em que a autora esteve envolvida[i]; 3) e uma abordagem qualitativa ao discurso de um conjunto de adultos sobre as suas mobilidades espaciais, passadas e presentes, suportada em entrevistas.

Na leitura transparece também o papel fundamental da observação, porque um objeto empírico desta natureza “exige claramente o conhecimento dos territórios… espaços, paisagens, tempos, velocidades, ritmos, condições físicas dos meios de transporte, desenho urbano imposto pelas infraestruturas, entre tantos outros aspetos que escapam às estatísticas oficiais”(p.127).

Partindo da hipótese que as mobilidades traduzem dinâmicas de desigualdade, patentes em condições diversas de acessibilidade aos lugares, e que as narrativas sobre esses lugares (re)produzem lógicas de pertença identitária e de distinção social, Sofia Santos explora ligações entre vários quadros teóricos.

Um vetor chave desse exercício é o que liga a vasta problematização das desigualdades sociais contemporâneas à sociologia dos territórios. Aqui se destaca o conceito de justiça espacial, enunciado por Soja (2010), tendo como fundo as discussões sobre a justiça social, designadamente de John Rawls (1971) e Amartya Sen (2012).

O contributo de Henri Lefebvre é incontornável neste quadro, com La Production de l’Espace (2000), onde o espaço é analisado como produto e produtor social ou Le Droit à la Ville (2012) onde releva a acessibilidade ao espaço público. Note-se que, como afirma Borja (2010), o direito à mobilidade se inscreve também no direito à cidade.

Num trabalho sobre mobilidade, impunha-se convocar não apenas a importância do espaço na teoria social, mas também a centralidade da dimensão tempo, como fez Giddens (2003) a partir do trabalho do geógrafo Hägerstrand, enfatizando o tempo-espaço como um recurso dos agentes. Também Lefebvre (2017) explora o tempo e o espaço no ritmo da vida quotidiana em Rythmanalysis, uma obra menos conhecida a que Sofia Santos recorre.

Outra referência importante nesta discussão é o conceito de motilidade (Kaufmann, Bergman, & Joye, 2004), que interliga as possibilidades de mobilidade que são dadas pelas estruturas e pelos recursos com a apropriação que os sujeitos fazem na construção dos seus trajetos. A motilidade é assim a capacidade de bens, informação ou pessoas serem móveis no espaço geográfico e social e a adequação dessa capacidade às circunstâncias.

Por fim, o papel das políticas públicas, por afirmação ou omissão. É conhecido o efeito dos sistemas públicos de transportes na estruturação dos territórios, como também se reconhece a aposta em estruturas rodoviárias e o incremento mais recente do automóvel nas deslocações pendulares. O território encara-se então aqui, simultaneamente, enquanto estrutura e enquanto processo, na medida em que depende das políticas o combate às desigualdades socioterritoriais e a promoção de uma acessibilidade justa do espaço.

Na componente empírica a autora segue um raciocínio tipológico. É o que faz com o resultado da aplicação de metodologias extensivas nos três capítulos que integram a segunda parte do livro e também na terceira parte com metodologias intensivas, concretamente a partir de entrevistas semi-diretivas.

Partindo da estreita relação entre o desenvolvimento dos sistemas de transportes, as alterações dos padrões de mobilidade e a expansão da malha urbana, a autora toma a Área Metropolitana de Lisboa (AML) como um laboratório privilegiado para a análise das dinâmicas ligadas ao aumento das infraestruturas rodoviárias, ao alargamento das bacias de emprego, à dispersão residencial,  encontrando um território de crescente complexidade, com novas polaridades e mais conexões no seu interior.

Reportando-se a estudos do INE (2001, 2003) e de Teresa Barata Salgueiro ( 2001) sobre as dinâmicas socioespaciais da AML, a partir dos dados dos censos de 1991 e 2001, Sofia Santos ensaiou uma tipologia idêntica ao nível da freguesia para o período intercensitário 2001-2011. Na linha desses estudos, continua a verificar uma justaposição entre dinâmicas sociais e espaciais: “tendências de localização de determinados grupos profissionais ou socioeconómicos estão a par de dinâmicas espaciais de consolidação, densificação e centralidade urbanas diferenciadas” (p.63).

Também para os padrões de mobilidade da população empregada ou estudante, a autora elabora uma tipologia de freguesias e ensaia modelos explicativos para o uso do automóvel, não deixando de notar a ausência de idosos e desempregados nos dados dos censos sobre mobilidade, o que considera, só por si, um indicador significativo de exclusão.

De 2001 para 2011 a mobilidade continua a aumentar e o território metropolitano expande-se por via de mais entradas na AML, o que traduz um aumento da sua atratividade. A organização tradicional centro-periferia permanece, mas o centro é hoje Lisboa com Amadora, Oeiras e Odivelas. Ainda assim: o concelho de “Lisboa continua a ser o grande centro das dinâmicas da AML, não só porque polariza movimentos de todos os outros concelhos, concentrando durante o dia um número inigualável de população empregada ou estudante, mas também considerando a sua dimensão interna de população residente que aqui trabalha ou estuda (p.81).

A autora repetiu o exercício que o INE realizou no estudo de 2003 sobre a diferenciação social (dados dos censos de 2001), agora com informação do inquérito Localways de 2014, a partir do qual destacou a situação das mulheres trabalhadoras menos qualificadas, as quais acumulam uma maior frequência no uso do transporte público, que é mais moroso, com a responsabilidade de assegurar a mobilidade das crianças.

A terminar a componente quantitativa, cruza as duas tipologias de freguesias, a que retrata a diversidade sociodemográfica deste território e a que se reporta às práticas de mobilidade, confirmando as dinâmicas sócio espaciais.

A consolidação urbana continua a acompanhar a maior utilização dos transportes públicos e a menor duração dos movimentos pendulares. Aqui, sublinhe-se que, na capital, tanto a oferta de emprego como a oferta de transportes públicos são inigualáveis.

Em todo o caso, verificou-se nas últimas décadas um aumento do uso do carro, em resultado do aumento do poder de compra da população e também de mudanças ao nível de políticas que favoreceram o uso do transporte individual.

Da forte associação entre as duas tipologias retira interpretações próximas do paradigma funcionalista dos estudos urbanos: “o centro e primeira coroa permitem mobilidade pública ou particular relativamente rápida, na segunda coroa as famílias mesmo trabalhando fora do concelho ainda conseguem recorrer ao sistema de transporte público, enquanto numa terceira coroa há menos alternativa ao transporte particular” (p. 115).

Procurando contrariar a prevalência dos métodos quantitativos nos estudos sobre mobilidade, geralmente focados na máxima utilidade ou eficiência, a autora procura, na terceira parte, analisar práticas e representações para compreender de que forma os percursos espaciais incorporam discursos de identidade territorial e de distinção social e também em que medida acompanham dinâmicas de desigualdade social.

Nas entrevistas explorou a biografia geográfica dos indivíduos e a importância dos ‘seus’ lugares, entendidos como quadros de interação. “As pessoas organizam o seu dia a dia já há bastante tempo no mesmo lugar (…). Mesmo que não seja o centro da área metropolitana é o centro do seu mundo, e o mapa mental que organiza os territórios em redor, práticas e representações espaciais, assume-o como ponto de partida e regresso” (p.141).

Aos recursos e às competências associam-se as vivências da mobilidade. A variedade de modos com que as pessoas se adaptam e apropriam das oportunidades de mobilidade pode ser um efeito da disponibilidade de recursos, mas também constituir, por si mesma, uma competência de adaptabilidade com que o indivíduo utiliza os meios de transporte.

No último capítulo, dedicado aos motivos e experiências de mobilidade, é particularmente interessante escutar os entrevistados que conduzem diariamente fundamentarem essa opção nas falhas dos transportes públicos, em necessidades familiares ou imperativos profissionais, mesmo quando continuam a referir-se ao comodismo na descrição do comportamento dos outros que fazem a mesma opção.

Assim, e “independentemente dos fatores e condicionantes que podem estar na base da opção do meio de transporte, há uma narrativa sobre o uso desse modo, sobre a utilidade, a função e o conforto do mesmo (p.165), nota a autora, que assim explica por que há argumentos idênticos em pessoas com condições diferentes.

Apresenta finalmente uma última tipologia que reflete a situação dos indivíduos entre os recursos e as condições de que dispõem, integrando a apreciação que têm das mesmas. Procura, desta forma, integrar os aspectos mais materiais das práticas e possibilidades desiguais de mobilidade com a interpretação e apropriação que as pessoas constroem sobre estas.

Ao concluir, Sofia Santos afirma que as mobilidades metropolitanas são bem mais diversas do que habitualmente falam os estudos, e não se esgotam na descrição dos movimentos pendulares. Elas reproduzem desigualdades relacionadas com outros domínios, como a estruturação do território, as desigualdades de género, ou a conciliação trabalho-família, ou seja, reproduzem e são produzidas por desigualdades estruturais.

As pessoas não moram num determinado lugar por acaso, e o mesmo se passa com os lugares onde trabalham, consomem ou passeiam. As escolhas de mobilidade são influenciadas por experiências passadas e representações presentes.

Para além dos seus perímetros administrativos a AML configura-se, então, também a partir das geo(bio)grafias dos indivíduos e famílias, qual “sociologia das pequenas coisas tecendo a macroestrutura que, por sua vez, emoldura e condiciona os quotidianos vários” (p.189).

 

Referências bibliográficas

Borja, J. (2010). A democracia em busca da cidade futura. In A. Sugranyes & C. Mathivet (Eds.), Cidades para Todos: Propostas e Experiências pelo Direito à cidade. Santiago do Chile: HABITAT International Coalition.

Giddens, A. (2003). A Constituição da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes.

INE (2001). Tipologia Socioeconómica da Área Metropolitana de Lisboa – 1991. Lisboa: Instituto Nacional de Estatística.

INE (2003). Movimentos Pendulares e Organização do Território Metropolitano: Área Metropolitana e Área Metropolitana do Porto: 1991/2001. Lisboa: Instituto Nacional de Estatística.

Kaufmann, V., Bergman, M. M., & Joye, D. (2004). Motility: Mobility as capital. International Journal of Urban and Regional Research, 28(4).

Lefebvre, H. (2000). La production de l’espace. Paris: Anthropos.

Lefebvre, H. (2012). O Direito à Cidade. Lisboa: Livraria Letra Livre.

Lefebvre, H. (2017). Rhythmanalysis. Space, Time and Everyday Life. Londres e Nova Iorque: Bloomsbury.

Rawls, J. (1971). A Theory of Justice. Cambridge: Harvard University Press.

Salgueiro, T. B. (2001). Lisboa, Periferia e Centralidades. Oeiras: Celta Editora.

Sen, A. (2012). A Ideia de Justiça. Coimbra: Edições Almedina.

Soja, E. W. (2010). Seeking Spatial Justice. Minneapolis: University of Minnesota Press.

 

 

 

[i] Trajetos de sustentabilidade local: mobilidade espacial, capital social e desigualdade (Localways)”, financiado pela FCT, coordenado por Renato Carmo