No dia 10 de dezembro de 2023, foram divulgados os resultados do último inquérito da OCDE às competências dos adultos, realizado em 2023 no âmbito do PIAAC – Programa Internacional para a Avaliação das Competências dos Adultos. Esta edição do inquérito contou com a participação de 31 países e economias mundiais, incluindo Portugal. Os dados recolhidos permitem caracterizar a população residente nos países participantes entre os 16 e os 65 anos de idade, de acordo com as suas competências de literacia, numeracia e resolução de problemas. A amostra portuguesa conta com 3.160 indivíduos que deram respostas completas ao questionário.

Portugal sobressai neste inquérito como o país com os mais baixos níveis globais de literacia e numeracia da Europa (com 235 pontos e 238 pontos, respetivamente, i.e., menos 25 pontos face à média da OCDE) e o 2.º mais baixo globalmente, sendo apenas ultrapassado pelo Chile. Estatisticamente, os resultados obtidos por Portugal assemelham-se aos da Lituânia e da Polónia.

De facto, na escala de 6 pontos utilizada pela OCDE para sintetizar os resultados nos testes de literacia e numeracia – “abaixo de 1”, “nível 1”, “nível 2”, “nível 3”, “nível 4” e “acima de 4” –, cerca de 40% dos adultos em Portugal apresenta níveis iguais ou abaixo do nível 1. Significa que 4 em cada 10 adultos apenas são capazes de realizar tarefas de leitura, cálculo e compreensão com um grau de complexidade muito baixo, i.e., cuja execução não requeira a interpretação de significados implícitos, a decifração de textos longos ou a consideração de diversos dados e instruções em simultâneo, por exemplo.

Do ponto de vista internacional, outros países europeus obtêm resultados significativamente abaixo da média da OCDE nos três domínios avaliados pelo PIAAC, entre eles a Croácia, a França, a Hungria, a Itália, a Lituânia, a Polónia e Espanha – i.e., maioritariamente países do Leste, Báltico e Sul europeu. No sentido contrário, liderando o ranking de literacia, numeracia e resolução de problemas, encontram-se os países do Norte europeu – a Finlândia, a Noruega e a Suécia –, bem como os Países Baixos e o Japão.

Importa ressalvar que os resultados evidenciam uma evolução negativa global destes indicadores na generalidade dos países participantes, face à ronda anteriore deste inquérito (na qual Portugal não participou). Os países nórdicos são as únicas exceções a esta regra, tendo melhorado significativamente tanto os níveis de literacia como os de numeracia entre a sua população adulta.

Contudo, pouca atenção tem sido dada ao impacto que as desigualdades – nomeadamente, as etárias, de género e de escolarização – tiveram nos resultados obtidos por Portugal. Destacam-se, de seguida, algumas das mais notórias, especificamente, focando as competências de literacia:

  • Em Portugal, as desigualdades de literacia entre gerações são consideravelmente maiores do que em muitos países da OCDE. Os jovens portugueses entre os 16 e os 24 anos têm os mais elevados níveis de literacia no país (258 pontos), ao passo que as pessoas mais velhas (55 – 65 anos) apresentam os valores mais baixos (213 pontos). Esta diferença é de 44,8 pontos, ao passo que na média da OCDE a vantagem dos jovens é de 29,5 pontos.
  • 22,3% dos jovens portugueses têm níveis de literacia iguais ou abaixo de 1 – valor que não fica muito distante do registado entre os restantes jovens da OCDE (18%). Pelo contrário, 59,9% dos adultos mais velhos têm estes níveis de literacia – uma grande diferença face aos seus congéneres de outros países (37,6%).
  • Portugal sai-se particularmente mal entre os adultos menos qualificados (i.e. com qualificações abaixo do ensino secundário). 70% obtêm scores iguais ou abaixo do nível 1 de literacia, uma diferença de +8,2 p.p. face à média da OCDE. Ainda assim, estes adultos em Portugal obtêm melhores resultados que os seus congéneres nos EUA, na Coreia do Sul, na Suíça e na Áustria, por exemplo.
  • Entre os adultos com ensino superior / terciário, Portugal situa-se próximo da média da OCDE: 15% destes demonstram ter níveis muito baixos de literacia, +2,2 p.p. do que os restantes países.
  • Em Portugal, tal como noutros países da OCDE, não parece existir uma relação direta significativa entre o género e as competências de literacia, significando que os homens e as mulheres têm, em média, resultados semelhantes neste indicador. No entanto, os resultados ajustados – i.e., que calculam as diferenças de género na literacia levando em consideração outras características, como a idade, os níveis de escolaridade, etc. – demonstram que, na verdade, as mulheres em Portugal obtêm em média mais 5,8 pontos no teste de literacia que os homens com as mesmas características sociodemográficas. Este é o valor mais elevado da OCDE, seguindo-se apenas a Espanha e a Flandres com valores semelhantes e estatisticamente significativos.
  • A análise cruzada do género com a idade elucida estes dados, demonstrando que é entre as mulheres portuguesas mais velhas que a desvantagem face aos homens é maior (a segunda mais alta da OCDE): estas mulheres obtêm em média -4,8 scores no teste de literacia. Pelo contrário, entre os mais novos, a diferença de género não é significativa (1,1 score) e, entre os indivíduos entre os 25 e os 44 anos, as mulheres em Portugal superam os homens nos níveis de literacia por 3,3 pontos.
  • Portugal é o 11.º país da OCDE onde ter pais com ensino terciário tem um maior impacto (positivo) nas competências de literacia. Considerando os valores estatisticamente ajustados – ou seja, que “controlam” concomitantemente o efeito de outras características sociodemográficas – estes adultos ultrapassam aqueles cujos pais têm qualificações mais baixas em 28,5 pontos (+2,9 face à média). Esta desigualdade é, contudo, ainda mais determinante em países como a Suíça, a Hungria, a Alemanha, a Áustria, a Polónia e a Chéquia.

Em suma, vemos que os resultados negativos de Portugal ao nível da literacia são mais passíveis de ser interpretados substantivamente com um foco nas desigualdades, ao invés das pontuações globais. Primeiramente, porque essa abordagem demonstra que alguns países se saem relativamente pior do que Portugal em certos indicadores ou junto de determinados grupos populacionais – nomeadamente, entre os menos escolarizados. Em segundo lugar, porque permite esclarecer as especificidades do caso português, sobretudo, no que toca ao enorme gap geracional e de qualificações por detrás dos maus resultados a literacia. A escolaridade obrigatória apenas passou a abranger o ensino secundário em 2009, contribuindo para o aumento da distância entre as gerações mais velhas e as mais novas no acesso à escolarização – que é um dos preditores mais importantes dos níveis de literacia.

Por outro lado, a força das desigualdades entre sistemas educativos surge evidenciada neste inquérito. Se é verdade que “os nossos licenciados têm menor literacia do que os finlandeses com o secundário”, o facto é que o mesmo se verifica em mais de metade dos países e de forma ainda mais agravada entre os diplomados espanhóis, italianos, coreanos, eslovacos e polacos, por exemplo. Como referem Schleicher & Scarpetta (2024) na sua análise aos principais resultados, estes dados são sintomáticos da variação histórica na qualidade e abrangência dos sistemas educativos nacionais, nomeadamente, no que toca à transmissão eficaz de competências-chave para a vida adulta em sociedades crescentemente pautadas por processos céleres de mudança social e tecnológica. Os resultados menos gravosos encontrados entre as gerações mais jovens, em Portugal, podem constituir um sinal positivo de melhoria intergeracional nas oportunidades educativas que importa destacar.

Concluímos com uma reflexão acerca da possível relação entre o decréscimo dos níveis de literacia e a polarização social e política, tal como avançada por Schleicher & Scarpetta (2024). Não será por acaso que, em Portugal, tal como noutros países na “cauda” do ranking (e em clara contra tendência face aos países que lideram a tabela), as pessoas com menos literacia demonstram, em 2023, maior confiança na sua capacidade de influenciar os assuntos políticos do que os seus pares com os maiores níveis de literacia. Quase todos estes países assistiram, nos últimos anos, a um crescimento acentuado de partidos e movimentos de direita radical, onde Portugal não é exceção. Ao mesmo tempo, sabemos que a identificação com estes partidos tende a ser maior entre as populações “deixadas para trás” pela evolução tecnológica e pelo desenvolvimento económico. Estas são, maioritariamente, constituídas por homens mais velhos e com baixos níveis de escolaridade – que correspondem aos grupos com os piores resultados em literacia, em Portugal. Importa, por isso, considerar os efeitos adversos dos baixos níveis de literacia a partir de uma lente multidimensional, que leve em conta a concentração de indicadores de vulnerabilidade entre grupos populacionais particularmente suscetíveis aos discursos de extrema-direita.

 

Referências

Castro, C. (2024). Iliteracia é a palavra-chave. Jornal Público, artigo de opinião, 19/12/2024. https://www.publico.pt/2024/12/19/opiniao/opiniao/iliteracia-palavrachave-2116187.

Deodato, D. (2024). “‘Left behind places’: a geographical etymology”, de Andy Pike e colegas (2023). Recensões OD, Lisboa, Observatório das Desigualdades / CIES-Iscte. https://www.observatorio-das-desigualdades.com/2024/12/09/left-behind-places-a-geographical-etymology-de-andy-pike-e-colegas-2023/.

OECD (2024a), Do Adults Have the Skills They Need to Thrive in a Changing World? – Survey of Adult Skills 2023. Paris, OECD Publishing. https://doi.org/10.1787/b263dc5d-en.

OECD (2024b), Survey of Adult Skills – Reader’s Companion. Paris, OECD Publishing. https://doi.org/10.1787/3639d1e2-en.

Schleicher, A. & Scarpetta, S. (2024). Survey of Adult Skills 2023 – Insights and Interpretations. Paris, OECD. https://www.oecd.org/content/dam/oecd/en/publications/support-materials/2024/12/survey-of-adult-skills-2023_1ab54c9e/PIAAC2024_InsightsInterpretations_FULL.pdf.

 

Elaborado por Adriana Albuquerque (escrito a 21/12/2024. Publicado a 08/01/2025).

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